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Há uns meses li num jornal diário uma reportagem sobre um Museu de Escravos em Redenção, Ceará, Brasil. Sempre tive curiosidade sobre todos os assuntos afro-brasileiros e esta questão da escravatura nunca me foi bem resolvida. Não consegui lá ir naquela época, mas desta vez lá fui. A cerca de quarenta e cinco quilómetros da zona urbana de Fortaleza, e com muita atenção por falta de sinalização, cheguei a Redenção e estacionei na praça principal a partir da qual tudo acontece.

Depois da visita à Igreja Matriz, fui ao propalado Museu da Liberdade. Mas antes de entrar no Museu observei uma escultura representando um negro com a corrente metálica partida que ligava as algemas em volta dos pulsos. Esta escultura foi colocada no local onde havia uma árvore tamarindeira à sombra da qual se organizou uma grande festa cívica em 1883, data em que se aplicou a abolição da escravatura em Redenção. Redenção, na “Senzala do Negra Liberto no Engenho Livramento, foi o primeiro local da abolição da escravatura que apenas seria legalizada com a famosa Lei Áurea cinco anos mais tarde. Ato heroico e de muita coragem que muito orgulha o local. Recordo que a assinatura desta Lei pela Princesa Isabel, Regente em substituição de seu pai Imperador D. Pedro II, levou ou foi o ato provocador imediato da queda da monarquia no Brasil. As forças poderosas dos ricos fazendeiros, produtores especialmente de café e açúcar, e alguns militares parecem ter provocado a derrocada. Nem a “falsa”, ironias da política, despedida no famoso Último Baile do Império realizada na Ilha Fiscal, Rio de Janeiro, faz esquecer os últimos dias do Imperador que foi um grande chefe de estado para a sua época, e que garantiu a unidade do país como um grande território, partindo para o exílio em 1889.

Depois entrei no Museu e qual não é o meu espanto verificar que se resume a uma sala com instrumentos de prisão e tortura apresentados em três bases baixas e onde se pode observar um Viramundo (espécie de algema metálica que obriga o corpo ficar acocorado e fixando em simultâneo braços e pernas), uma Gargalheira (espécie de gola de pescoço com uma haste que bloqueia a boca e dificulta a visão), uma Gargantilha (aro de pescoço), Correntes para amarrar os escravos, uma Gargantilha dupla, uma Cinta (aro de cintura) e umas Algemas. Depois uma vitrina com um Livro de compra e venda de escravos de 15 de julho de 1876 a 08 de julho de 1881, um Cadeado de senzala utilizado com correntes na porta de Engenho, um curioso, e com aspeto sinistro, Aparelho de extrair dentes, duas Chaves de Engenho e uma pequena Escultura metálica representando um escravo, e encontrado quando da demolição de uma casa em Redenção. Uma segunda vitrina contém um galho do Tamarindo, já atrás citado, e que tombou no dia 30 de abril de 2000. Sob este Tamarindo era tradição proceder-se à compra e venda de escravos, e foi guardado pelo simbolismo que lhe está associado. Encontram-se ainda afixados na parede quadros com fotos da Princesa Isabel, transcrição da chamada LEI ÁUREA (Lei nº 3353 de 18 de Maio de 1888 que declara extinta a escravidão no Brasil), com cópia do documento original daquela lei e outros documentos associados. No final da visita, de poucos minutos, perguntei se haveria algum catálogo ou publicação sobre esta matéria obtendo uma resposta negativa mas, de seguida, fui informado que há outro museu, privado, logo à entrada da cidade e que mantinham ainda a Senzala. Aliviei a tristeza. Ainda fui fotografar o busto da Princesa Isabel e o obelisco elevado quando da celebração do primeiro cinquentenário da abolição da escravatura em Redenção e que transcrevo a inscrição que está gravada na sua base: “Homenagem do povo redencionista aos seus bravos antepassados que, a 1 de Janeiro de 1883, antes que todos no Brasil, proclamaram a liberdade da raça negra e fizeram de sua terra o berço das auroras e a primeira faísca de heroísmo atirada aos ventos do futuro 1 de 1 1883 – 1 de 1 1933”. De seguida lá fui à procura do Museu Senzala.

Antes de escrever sobre o museu, como se fosse o tempo para aí chegar, devo referir que o açúcar, e a sua história, é um dos produtos alimentares que mais me fascina. O açúcar foi desde a fundação de Portugal, objeto de atenções especiais. Já conhecido na Península Ibérica no século XII através dos muçulmanos que tinham ocupado parte do território, é deles que herdámos algumas técnicas que permitiram que a nossa doçaria tenha o prestígio conhecido. Com o alargamento do território português e expulsão dos mouros, os infiéis, foi permitido que se mantivessem aqueles que comercializavam o açúcar. Depois em Lisboa foi-lhes confinado um bairro, a Mouraria, para viverem e manterem as suas tradições. O açúcar, também um fármaco importante naquela época, foi alvo de disposições régias que regulavam o seu uso e impunham regras pelo preço elevado que se praticava para o seu comércio. Claro que há razões históricas para ainda hoje sentirmos a doçaria portuguesa como uma atividade feminina, e slow. O açúcar provocou sempre um certo fascínio tanto na doçaria popular como na doçaria mais rica. “A feitura artesanal do doce é essencialmente uma realização estética. Pois o doce, para ser gostoso, tem que ser bonito”, segundo Raul Lody. No Brasil tenho pena que usem e abusem do leite condensado (leite de moça) que retira a subtileza ao produto final. Faz parecer todos os doces muito iguais. Portugal, antes de receber o açúcar produzido no Brasil a partir de 1533, tentou a plantação de cana-de-açúcar no Algarve, e depois na Ilha da Madeira, mas sem grandes resultados. Ora são os engenhos do Brasil que vão absorver grande parte dos escravos. São estes escravos, que sofrendo, produziam este produto tão doce. Tanto sofrimento para nos adoçar a boca e que ajuda ao espírito! Tanto sofrimento para enriquecimento de gente desumana…

Eis-me chegado ao Engenho Livramento e surge um portão ladeado por uns muros altos com pinturas murais e duas colunas encimadas por dois leões pintados de amarelo. Pode ler-se em placas altas: “A Liberdade Aconteceu Aqui”. Deparei-me com o que poderia ser um Turismo em Espaço Rural pois a atividade do Engenho continua, não produzindo açúcar mas cachaça, mantendo o engenho de cana-de-açúcar a funcionar, os canaviais e a casa grande. Outrora residência dos proprietários pode agora visitar-se. No que seria a residência são agora salas de exposição com documentação alusiva à passagem dos anteriores proprietários, algum mobiliário da época e equipamento de escritório. O guia, fundamental neste tipo de visitas, revelou-se uma pessoa conhecedora e capaz de responder a todas as minhas, às vezes impertinentes, perguntas. Depois saímos da casa para visitar a Senzala do Negro Liberto, parte baixa da casa, que é o local onde viviam (guardavam) os escravos. É impressionante assistir aos relatos, no próprio local, de como eram sujeitos a viver acorrentados, castigados e por vezes terem de dormir no meio das suas fezes e muitas vezes comer diretamente do chão. Não me vou alongar sobre esses tormentos mas gostaria de deixar um apelo, um convite para visitar este local. Ainda visível o espaço destinado à Mucamas, com umas curiosas pinturas atuais de Orixás. Obrigado à Família Muniz Rodrigues por manter este espaço visitável. Mais, apetecia-me perguntar à Prefeitura de Redenção porque não transferir o seu Museu para este Engenho, ampliar e fazer um centro de interpretação. Provocar uma parceria público-privada para fazer um museu mais alargado e, porque não, um evento anual de discussões sobre este tema. E criar uma rota turística. Eu voltarei para aprender mais.

Mas antes de terminar quero transcrever um texto pintado numa das paredes do Engenho: “Não devemos esquecer nunca que milhões de seres humanos foram arrancados de suas terras para servir de escravos nas plantações do Brasil. Nosso país deve muito ao trabalho e aos ensinamentos dos povos africanos.”

E também me apetece perguntar o que fez a Igreja durante este flagelo. Pode ser que estes castigos nem fossem tão violentos quanto foram muitos os da Inquisição.    

Comam doces, mas não abusem, e acompanhem com vinho generoso ou de última colheita.

© Virgílio Nogueiro Gomes

 

 

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