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Em continuação do texto sobre sopas e caldos vou, desta vez, ainda com calor, redigir umas considerações sobre sopas frias. A partir deste texto irei considerar genericamente o termo sopa, embora seja possível considerar algumas como caldos.

Vamos às sopas frias apesar de, no nosso património culinário, apenas ter algum relevo o Gaspacho Alentejano. Para termos uma sopa fria não basta arrefecer uma sopa e servi-la. Uma sopa fria obriga a uma composição mais delicada. Nem todas as sopas quentes servem para servir frias. Aliás nesse sentido poucas serviriam. A maioria das nossas sopas seria um desencanto, servidas frias.

Não vou alongar-me sobre a variedade de “consommés” que se servem frios, aromatizados com Porto ou Jerez, com a aplicação de ervas aromáticas, ou a adição de um pequeno folhado decorativo ou algumas massas. São essencialmente caldos de carnes ou de peixes, clarificados.

Conheço algumas pessoas que simplesmente afirmam que não haver sopas frias. Que é uma aberração culinária. Sopa é quente. Talvez pelo hábito de só comerem sopas quentes e associar a sopa ao período invernal.

Comecemos pelo nosso Gaspacho Alentejano que me parece ser a única sopa fria portuguesa ainda em uso. O gaspacho é o exemplo da simplicidade no seu melhor. Comida de campo a que alguns chamam de pobre. Podemos encontrar uma receita base. Esta é confeccionada a partir de um piso em almofariz com alho e sal. Este piso é colocado numa terrina que se rega com azeite e vinagre, a gosto, e adiciona-se orégãos secos. De seguida junta-se um puré fresco de tomate. Adiciona-se pepino, tomate e pimento verde cortados em pedacinhos e rega-se tudo com água gelada. Serve-se bem fresco e por vezes juntam-se cubinhos de gelo para garantir a temperatura baixa do conjunto. É hábito juntar no final pequenos pedacinhos de pão. Há sítios onde ainda se juntam pedacinhos de azeitona preta ou presunto. Segundo Maria de Lourdes Modesto, sempre sábia, apresenta ainda uma versão de Gaspacho de Mértola. Neste começa-se pelo puré fresco de tomate ao qual se junta pepino e presunto finamente picados. Esmaga-se alho com sal na terrina de servir o gaspacho e junta-se o puré de tomate que tem os pedacinhos de pepino e presunto. Polvilha-se com orégãos e é então que se junta azeite e vinagre, e por fim a água gelada. Depois adiciona-se pão cortado com as mãos, em pedacinhos. No entanto vamos encontrar, no Algarve, uma receita em tudo idêntica ao gaspacho que é o Arjamolho, que é acompanhado com peixe frito ou sardinhas assadas, e serve mais como acompanhamento do que como sopa.

Mas sobre gaspachos temos a grande referência internacional que é o espanhol. A Andaluzia reclama para a sua região a autoria desta receita e que, alguns autores, encontram origem nos árabes que aí estiveram estabelecidos. Gaspacho quererá dizer “pão demolhado”. Curiosamente Mikel Corcuera atribui este nome de gaspacho a uma designação portuguesa caspacho (?), palavra proveniente da ocupação pré-romana, caspa, que significava “pequeno fragmento”. O mesmo autor sugere o século XVII como o período da primeira referência a gaspacho. Quanto à sua origem árabe terá que se reflectir bem pois os árabes abandonaram esta região antes que o tomate e os pimentos, hoje fundamentais, chegassem das “Américas”. Os sevilhanos dizem que o gaspacho é seu. Muitos espanhóis sugerem que o gaspacho teve origem no “Ajoblanco”, sopa fria com alhos pisados com amêndoas, migas de pão, azeite, vinagre e termina-se juntando água gelada. Ainda se podem juntar uvas de preferência casta moscatel. Para além desta variante podemos encontrar muitas variedades de gaspachos andaluzes com a particularidade de apenas variar pequenos detalhes. Claro que o que hoje em dia encontramos é um creme espesso e frio. Possivelmente os primeiros gaspachos eram feitos com a mistura dos produtos e sempre mais pão do que em Portugal. Mas o gaspacho espanhol / andaluz ultrapassou fronteiras e encontramos a designação gaspacho para identificar uma técnica de confecção de sopas frias. É o caso do famoso Gaspacho de Lavagante do restaurante do Parc dês Eaux-Vives, de Genève.

Qual a diferença em relação ao alentejano? Em relação aos produtos apenas há que acrescentar a cebola. Depois a apresentação: nós colocamos pedacinhos de pão, na Andaluzia colocavam fatias generosas de pão que depois eram mexidas e se envolviam bem na água. Se perguntarmos a gente não especializada dirá apenas que o gaspacho andaluz é o alentejano terminado com varinha mágica. Evolução dos tempos!

A outra sopa fria, e um dos clássicos, é a Vichyssoise que também tem as suas estórias. Estamos perante um fino creme de alho francês e batata, amaciado com natas, e guarnecido de cebolinho. Segundo o “Dictionnaire du Gastronome”, de Jean Vitaux e Benoît France, a Vichyssoise foi inventada por Louis Diat em 1910 quando da abertura do terraço do Hotel Ritz Carlton, de Nova Iorque. A sua origem seria de uma receita popular francesa que aproveitou, adaptou e serviu fria. Sendo lançada naquela data, porque é que nem Escoffier no seu “Guide Culinaire” de 1921, nem ainda na edição de 1939 do Larousse aparece citada? Mais, em 1962 o “Dictionnaire de l’Académie des Gastronomes” também não lhe faz referência. Maria Lucia Gomensoro, no seu Diccionário de Gastronomia, confirma a data de 1910 como a data de nascimento da Vichyssoise, desconhecendo a seu criador, que poderá ser um chefe francês emigrado. Muito engraçado é o facto de uma edição portuguesa, “Coisas Boas”, ter uma receita de Vichyssoise. Ora parece que a primeira edição terá sido nos finais dos anos 60, no tempo em que a composição tipográfica era manual, letra a letra, e então o tipógrafo estranhou a afirmação que a sopa Serve-se muito fria, e terá alterado para “muito quente”. Certo é que a edição actual ainda a manda servir quente.

A Vichyssoise é possivelmente a sopa fria mais conhecida no mundo. De tal forma que se transformou numa técnica, a partir de um puré leve de batata e variando os vegetais.

Em Portugal é, agora, vulgar encontrarmos a sopa de melão ou meloa, por vezes terminada com natas e muitas vezes com pedacinhos ou estaladiço de presunto. Mas outras sopas frias vão aparecendo. Alguns exemplos: “Gaspacho de morango com camarão e gengibre”, Sopa fria de beterraba”, “Sopa fria de melancia com manjericão”, “Sopa de melão com pepino e grifini de pizza”, “Sopa fria de couve-flor e coentros”, e tantas outras que se tornam uma entrada saudável e muito agradável neste tempos de calor. Eu nunca esquecerei uma sopa fria de pimentos amarelos que me serviram no restaurante “Cibreo”, de Florença, ainda antes desta explosão recente de sopas frias. Mas nunca esqueçam que uma sopa fria não é uma sopa que se conservou e serviu fria. É preciso pensar nos produtos e suas ligações e saber como se sentem, frios, na boca. E estranho muito que no Brasil seja uma prática pouco utilizada. Excepto alguns restaurantes de topo de S. Paulo ou Rio de Janeiro, não é fácil encontrar sopas frias. E com aquele clima maravilhoso!

Para estas sopas também se pode acompanhar com vinhos excelentes. Cada vez mais os restaurantes têm sugestões apropriadas.

© Virgílio Nogueiro Gomes

FOTO: Adriana Freire