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(Com Capa e Boné da Confraria Ibérica da Castanha)

 

 É costume assistir a relatos das acções dos anos que passam. Não me movem intenções de olhar para trás, mas vejo-me mais com as perspectivas de futuro. No entanto apetece-me referir a guerra individual em que me envolvi contra a alheira de bacalhau. E nunca é demais insistir que os motivos que me levaram a “agredir” a alheira de bacalhau não tinham a ver com o produto em si nem discutir as suas qualidades. A questão principal é cultural, antropológica, e tem mais a ver com a designação do que com o conteúdo. Sim, porque não me oponho a que se lhe chame enchido de bacalhau ou, no limite, como alguns amigos meus lhe chamaram “bacalheira”. E basta até analisar os postos de venda. Porque razão os talhos hão-de vender um produto de bacalhau? Quando uma vez questionei um responsável de um supermercado sobre as alheiras de bacalhau estarem a ser vendidas na secção das carnes a resposta foi pronta: “Na secção dos peixes não se vendiam”. Ora é esta a questão fundamental. Associa-se a alheira a carne, é a sua gordura que lhe dá aquele gosto inimitável. E é essa gordura que lhe permite, com a ajuda do lume, autocozinhar-se. Registei com satisfação que alguns restaurantes entenderam esta perspectiva e depois deixaram de manter nas suas listas a alheira de bacalhau.

Uma outra, e permanente, minha batalha é a utilização indevida de nomes de receitas quando não executadas de acordo com a receita original. E tanto mais grave quando hoje todos sabemos que as receitas já estão todas publicadas. O segredo da receita não é mais que o jeito, a habilidade, ou a eficiência na sua reprodução. Recordam-se possivelmente da minha crónica sobre o “Bacalhau Espiritual” que considero uma das receitas mais abastardadas que assisto ser servidas na nossa restauração. Muito vezes o produto vendido até é bom, e sabe bem. E os clientes gostam do que comem mas não estão a comer aquilo que lhes é proposto, ou melhor, não está a ser executado aquilo que lhes é proposto. Ora aqui entra outra questão que é a falta de informação da clientela que depois se revela na falta de exigência acerca do que lhe é servido. Quantos clientes sabem o que é “Bacalhau Espiritual”? Este é apenas um dos muitos exemplos de confecções que não correspondem à receita.

Mas o caso mais curioso e que me causa perplexidade é a proliferação de “porco preto” ora em plumas ora em secretos. Que ideia fazem os clientes ao verem num cardápio a indicação de “porco preto”? Dei-me ao cuidado de perguntar durante cerca de um mês o que os clientes pensavam ser o “porco preto”. Eis os grandes grupos de respostas: “é o melhor”, “é o porco alentejano que só come bolotas”, “é o porco que vem de Espanha e faz os melhores presuntos”, “é máximo em qualidade de carne de porco”, “é o porco mais saboroso”, e a maioria responde que é “o porco alentejano”. Não quero aqui alongar um exemplo de um restaurante que até apresenta um porco preto de Vinhais. E logo da minha região! Evidentemente que a maioria das respostas eram dadas associadas a uma certa ingenuidade e, com alguns, tinha mais tempo e ia dando a minha informação: que a designação “porco preto” apenas nos situa num porco ibérico, que o verdadeiro porco do Alentejo tem uma designação protegida e que não há quantidade de porcos (alentejanos, pretos ou ibéricos) que dêem tantas plumas ou secretos. A que se deve esta discrepância do consumo em relação às designações correctas? Desinformação? Aceleração nas propostas ao consumo? Não acredito que os clientes gostem de ser enganados! Estão, é, seguramente, mal informados. Convém agora esclarecer que existe o verdadeiro porco Alentejano. E com nome protegido por legislação nacional e comunitária. Extraindo do Site www.qualifica.pt (recomendo a sua consulta), podemos ler em relação à Produção: “Animais produzidos na área geográfica de produção (nascimento, cria e abate) constante no Despacho nº 5084/99 de 22/01, naturalmente delimitada pelo montado, correspondendo grosseiramente ao Alentejo e a alguns concelhos limítrofes do Algarve, Ribatejo e Beira Baixa.” Ainda do mesmo Site: “carne de grão fino, muito saborosa e suculenta, obtida a partir de animais de raça suína Alentejana, que se caracterizam pela sua cor preta.” Pois temos a Carne de porco Alentejana DOP (Denominação de Origem Protegida), que é de porco preto mas Alentejana. Desafio a todos, sempre que encontrarem nos cardápios “porco preto” que perguntem se é Alentejano. Porque consumir o que é nosso, ajuda a todos. E termino com uma expressão da minha Amiga Ana Soeiro que afirma que os produtos de qualidade têm todos nome e apelido, mas também têm certidão de nascimento, do seu crescimento e do seu natural abate para contentamento do nosso paladar.  

O ano de 2010 vai ser de grandes desafios. Comemoram-se 10 anos da classificação da Gastronomia Portuguesa como Património Cultural. É altura de perguntar: e depois que ganhámos com isso? Ou melhor, o que isso permitiu a defesa do nosso património? Classificar não é o mais importante. Na altura lembro-me que a Espanha ficou muito atenta ao nosso projecto e recolheu informações. 

Certo que a Comissão Nacional de Gastronomia era complicada e de difícil funcionamento. Mas não tinha custos directos ao Estado, embora fosse extinta ao lado de tantas organizações possivelmente inúteis mas que essas, sim, eram onerosas. Algumas sugestões apareceram para desempenhar as funções que eram atribuídas à Comissão Nacional de Gastronomia e que representariam o trabalho visível da Comissão e representaria o conteúdo do Património: a qualificação do receituário. Esperemos que neste ano de 2010, seja encontrada uma solução para esse trabalho.

Outra esperança que mantenho para 2010 é a criação do Museu Nacional de Gastronomia. Que já deu tantos títulos de jornais…! Eu tenho uma opinião concreta sobre o que penso sobre este Museu, conteúdos e dinâmica. Espero brevemente atacar com este projecto que espero mereça o apoio das nossas autoridades do turismo. Sim, porque a Gastronomia pode constituir um elemento diferenciador do nosso destino. Temos “o melhor peixe do mundo”, temos um conjunto de produtos qualificados de fazer inveja e depois, ainda, temos a nossa autenticidade.

Parece certo que o Turismo de Portugal irá divulgar, e utilizar os ícones da Gastronomia Portuguesa conforme prevê o PENT. A divulgação, e a montagem de eventos de grande promoção destes ícones, vai criar, decerto, um mapa permanente de atractivos culinários.

Depois, e sei que é pedir muito, é que os portugueses aumentem a sua auto estima, que se orgulhem da sua cozinha, e que se criem acções conjuntas de operadores envolvidos nesta actividade.

Muito Apetite para 2010.

© Virgílio Nogueiro Gomes