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 (Doçaria com castanhas de Eurico Castro)

Depois da canseira, constata-se, do Natal que já não é o que era, veio o frenesim das festas de passagem de ano. Se me queixo de o Natal ser o “aleluia” do comércio, as festas de passagem de ano são o contentamento de muitos restaurantes, hotéis e espaços de festas. Ainda bem para eles.

Ainda sou do tempo em que, mesmo a passagem de ano, era uma festa de família. Já crescidos só podíamos sair de casa depois de saudar o Ano Novo com a Família. As tradições culinárias desta festa são aventureiras. Mais atrevidas em relação à culinária ou à falta de tradição. Estes festejos são mais recentes pelo que não adianta inventar tradições. Cada vez mais, e olhando para as propostas de “reveillons”, assistimos a um pretensiosismo culinário nem sempre correspondendo na sua execução. Eu sei que não represento a maioria. Prefiro a tranquilidade. Lembro-me que o último jantar que tive prazer em preparar foi dedicado ao meu saudoso amigo Afonso Praça e Natália. Poucos meses depois deixou-nos. E destas festas sinto um descarinho, melhor dizendo, uma saudade.

Os meus jantares do dia 31 passaram a ser iguais aos do quotidiano. E os últimos anos, em regiões quentes quase sempre no Brasil. Que festejam em grande, com toda a exuberância que lhes é habitual, e eu me fico pelo quarto de hotel vendo na TV a meia-noite de Lisboa e depois curioso chego à varanda despertado pelo barulho do fogo-de-artifício local, três horas depois.

Sobre as tradições de culinárias de fim de ano há, pois, pouco a dizer. Estamos a salvo pelo menos com as tradições doceiras natalícias. Ainda no Brasil tive a coincidência de, ao chegar da praia, ligar a TV e num canal português apresentarem doçaria de Natal e, coincidência, uma reportagem de Bragança sobre o aparecimento de uma nova receita local de bolo-rei. O criador da receita é o Eurico Castro que eu já conheço de outras novidades doceiras em terras transmontanas. E ainda mais interessante em relação a esta nova receita é o facto de o meu amigo João Campos, ilustre director do Jornal Nordeste, me ter convidado para provar esta nova iguaria quando estive em Bragança a propósito do Capitulo de Outono da Confraria de Enófilos e Gastrónomos de Trás-os-Montes e Alto Douro. As vinte e quatro horas que estive em Bragança não chegaram para ir efectuar essa prova. E eis que, aqui no Brasil, assisto à sua divulgação. A ideia parece-me boa. O próprio Eurico Castro afirma que criou esta receita, assim como a dos “ouriços de castanha” para maior divulgação da castanha transmontana. Muito bem, e repito que não há um receituário tradicional com a utilização da castanha. Não se inventem receitas como tradicionais. O que sabemos da história da castanha é a sua utilização como elemento encorpante de sopas e outros cozinhados, depois destronada com a chegada da batata. Portanto, receitas de castanha inventem-se!

Sobre este “Bolo-rei de marron glacê” tenho algumas reticências, não à sua receita ou produto final, mas em relação à sua designação. Todos se devem lembrar da minha guerra contra a “alheira de bacalhau”. Nunca me manifestei contra o produto mas sempre achei que se tratava de uma “usurpação” de designação de produto com uma carga história, e antropológica, muita forte. Havia um desvirtuamento da essência da alheira. Eu compreendo muito bem a modernidade, e em especial quando ela significa uma evolução natural da tradição. Aqui o caso é mais ligeiro. Não entendo porque usar termos estrangeiros para glorificar um produto nosso (a castanha). Temos que reconhecer que os franceses inventaram o “marron glacê” e que os espanhóis tão bem o copiaram.

Segundo Eurico Castro o “Bolo-rei de marron glacê” manteria a forma do Bolo-rei tradicional. Mas substitui as frutas cristalizadas por apenas frutos secos nos quais se incluem as passas de categoria superior. Depois sobre a massa em vez de colocar as frutas cristalizadas em formato inteiro usa as “marrons glacês”, e enfeitam com os ouriços de castanhas, sua anterior criação.

Sem querer dar palpite em casa alheia, parece-me que se poderia simplesmente chamar “bolo-rei com castanha”. Saberia mais a autenticidade local. E a castanha sairia da mesma forma valorizada. Ou porque não “castanhas cristalizadas”? E renovo o meu pedido de abandono de certos francesismos na doçaria portuguesa. É que continuamos a dar cartas ao Mundo com esta herança patrimonial da qual nos devemos orgulhar. E afirmar que as melhores castanhas também são as nossas. Mesmo sendo o Bolo-rei uma importação que soubemos adaptar e valorizar desde o século XIX.

Importa é descobrir e promover uma maior utilização da castanha transmontana. E devem ser os transmontanos a dar o exemplo.

BOM ANO 2010, com muito Apetite.

© Virgílio Nogueiro Gomes