castanheiros.jpg

 

Pode parecer estranho estar a escrever sobre castanha em pleno Verão quando, habitualmente, associamos este fruto à chegada do Inverno. Veremos como podemos utilizar a castanha durante todo o ano.

Recentemente recebi o convite para participar no Festival do Castanheiro em Flor, promovido pela Confraria Ibérica da Castanha. No texto que anunciava o Festival podia ler-se “…no castanheiro surgem as flores masculinas, e cerca de um mês mais tarde as femininas. Umas e outras aparecem em amentilhos erectos ou sub – pendentes, com 20 a 30 cm de comprimento, mostrando alguma exuberância, grande beleza e, por vezes, exalando um cheiro peculiar, sobretudo quando em estado selvagem.” Com este texto fiquei entusiasmado e decidido a percorrer a área privilegiada para observação dos castanheiros em flor, e com a esperança de conseguir desvendar o mistério do sexo das flores (pelos vistos os dois sexos encontravam-se na mesma árvore, sendo estas “atacadas” de hermafroditismo). Claro que a Confraria prometia muito mais. Convém desde já dizer que a flor dos castanheiros aparece entre Maio e Junho, e o fruto anuncia-nos a chegada do Inverno com as Festas dos Santos, dia 1 de Novembro, e os magustos de S. Martinho a 11 do mesmo mês. Tenho a sorte de ser amigo da Maria do Loreto Monteiro, grande especialista nesta matéria, que me esclareceu e privilegiou a minha observação.

A Confraria pretende que este passeio, para observar os castanheiros em flor, sirva de ponto de partida para mais uma actividade de Turismo da Natureza que se deverá desenvolver em Trás-os-Montes. O “castanheiro constitui um elemento estético marcante formando comunidades arbóreas com forma e disposição peculiares, que, mesmo quando se olha de relance para uma paisagem rural, pode-se dizer em que tipo de região nos encontramos…. E que representam verdadeiro património paisagístico.”

Em termos oficiais, temos a castanha nacional reconhecida a nível comunitário como DOP, que significa que a produção é identificada com a região específica donde é originária e cuja qualidade ou características se devem especialmente, ou exclusivamente, a um território geográfico, devendo a transformação e elaboração ocorrerem nesses locais devidamente identificados e delimitados. Assim, temos a Castanha dos Soutos da Lapa, Castanha de Marvão, Castanha da Terra Fria e Castanha da Padrela.

Na gastronomia, quando se fala em castanha, referimo-nos a generalidades: de elemento caracterizador da cozinha transmontana, de elemento de culinária para engrossar a sopa até à chegada da batata, de fruto para farinha em períodos de crise de cereais, e depois no máximo em especialidade francesa, o marron glacê.

A cozinha moderna, ou contemporânea, tem tentado reabilitar a castanha, utilizando-a sobretudo como uma guarnição, em puré e em pudins.

Por muito que custe a alguns, não há um receituário tradicional em Portugal. A castanha raramente aparece nos inventários de receitas portuguesas e sempre foi vista como um produto menor e alimento dos pobres. Com o aparecimento da batata começou a rarear a sua utilização. Talvez por isso o castanheiro também ser designado por “árvore-do-pão”. Pão que foi um alimento estruturante da alimentação portuguesa até ao século XX. No entanto, a castanha manteve-se como entretenimento guloso do tempo frio, a partir de Novembro, assada e vendida nas ruas; comida nos magustos de diversão; sobremesa (cozida ou assada) em algumas casas do interior do país. Lembro-me ainda de se comer, em final de refeição, cozida e depois barrada com manteiga ou geleia de marmelos. Isto no tempo em que as famílias tinham na refeição um dos principais momentos de convivialidade. Entretínhamo-nos a descascar as castanhas e, depois, tranquilamente a barrá-las com manteiga e especialmente com geleia de marmelos de confecção caseira. Raramente se escreve que a castanha faz parte da dieta dos porcos, designadamente, da raça bísaro, o que continua a acontecer, conferindo à carne um sabor próprio e de grande qualidade.

Encontramos um bom receituário na “Grande Enciclopédia da Cozinha” da autoria da nossa grande Maria de Lourdes Modesto, e ainda um relato de tradições associadas à castanha. Recentemente, também a Câmara Municipal de Marvão publicou um livro de receitas: “Marvão com Castanhas”, e a Câmara Municipal de Valpaços apoiou o livro de Jorge Lage: “A Castanha, Saberes e Sabores”. Jorge Lage é também autor de um interessante livro: “Castanha uma Dádiva dos Deuses”.

Se em Portugal os registos de receituário ou de utilização de castanhas são escassos, pelo mundo deparamo-nos com referências curiosas. Já os romanos, e em sugestões do livro de Apicus, encontramos aconselhamento para servir castanhas grelhadas e ainda na frigideira com especiarias, ervas aromáticas, vinagre, mel, azeite e pimenta.

Durante a Idade Média, na zona central da Europa, havia notícias de que os camponeses se alimentavam de castanhas, com as quais faziam uma farinha para confeccionar uma espécie de pão. Apesar de as referências não serem muitas, é necessário esperar pelo século XVIII para que, através do famoso Traité de la châtaigne, de 1780, da autoria de Parmentier, a castanha tenha entrado nas camadas mais altas da sociedade. Relembro que, curiosamente, foi Parmentir o grande promotor da batata na Europa. Lamentavelmente, a partir do século XIX, uma doença – a doença da tinta – tem atacado os castanheiros. Recentemente, final do século XX, também o cancro do castanheiro tem prejudicado esta espécie.

São, no entanto, os franceses que criaram a receita mais elaborada com castanhas e que é um ícone deste fruto: marron glacê, podendo dizer-se que a castanha “fala francês”.

Numa perspectiva bíblica, a castanha está associada ao conceito de castidade, a qual simboliza a abstinência, dada a semelhança do nome castanea que é etimologicamente ligada ao termo castitas (castidade). Para Filippo Picinelli, autor de “Mundus Symbolicus”, a castanha é uma metáfora do bom crente, mostra os espinhos no exterior e é cheio de virtudes no interior. A castanha representa também a pobreza pois, que sendo modesta com um exterior feio, está cheia de qualidades lá dentro. Mas também já li algures que a flor representa a perfídia.

Não vou, naturalmente, aborrecer-vos com designações técnicas e variedades de castanha. Convém, no entanto, conhecer duas das principais: a Longal e a Judia. E ainda, entre outras, a martainha, lamela, trigueira, boaventura, peluda, aveleira, amarela, francesa, verdeal, longal/redonda, rebordana, galega, preta, amarela/boaventura e carrazeda.

No passado, a castanha mostrou-se como um produto fácil e polivalente que hoje se tenta reabilitar. A castanha permitia ser armazenada depois de um processo de secagem ao ar ou estratificada em areia. Surgiu a castanha pilada que, depois de mergulhada em água, permitia todas as utilizações como as do feijão ou do grão. Modernamente, temos a juntar também a conservação por congelação, o que permite ter castanhas durante todo o ano.

Para entendermos como a castanha se está a instalar novamente nos cardápios, vejamos a ementa de merenda com que a Confraria Ibérica da Castanha encerrou a visita aos castanheiros em flor: Laranja com alho e azeite em pão de castanhas, Croquetes de castanha, Salada de feijão verde com castanhas, Favas guisadas com castanha, Repolgas com castanhas, Trutas passadas por farinha de castanha e molho de escabeche, Bacalhau com castanhas, Galinha frita previamente envolvida em farinha de castanha, Entrecosto com massa capote e castanhas, Creme frio de castanhas, Castanhas confitadas e Charlotte de castanhas. Depois ainda havia queijo e frutas variadas. Claro que tudo devidamente acompanhado por vinhos locais.

 

Para terminar, não resisto a transcrever um texto de Miguel Torga, em “Um Reino Maravilhoso” (1941), que transborda poesia: “Mas o fruto dos frutos, o único que ao mesmo tempo alimenta e simboliza, cai de umas árvores altas, imensas, centenárias, que, puras como vestais, parecem encarnar a virgindade da própria paisagem. Só em Novembro as agita a inquietação funda, dolorosa, que as faz lançar ao chão lágrimas que são ouriços. Abrindo-as, essas lágrimas eriçadas de espinhos deixam ver numa cama fofa a maravilha singular de que falo, tão desafectada que até no nome é doce e modesta – a castanha. Assada, no S. Martinho, serve de lastro à prova do vinho novo. Cozida, no Janeiro glacial, aquece as mãos e a boca dos pobres e ricos. Crua, engorda os porcos, com a vossa licença…”.

 

Vivam as castanhas na cozinha.

Bom Apetite!

 

© Virgílio Nogueiro Gomes