II
Ainda sobre a alheira de bacalhau
Não foi nem é meu objectivo criar um movimento nacional contra a alheira de bacalhau. O que eu escrevi, e que mantenho, é que ao enchido de bacalhau não se deverá chamar “alheira” pela forte carga cultural e de tradição regional que esse nome carrega. Não vou referir ou citar aqui a quantidade de personalidades de reconhecido mérito a nível nacional que me escreveram, manifestando o seu apoio em relação aos meus escritos. Muitos ainda me pediram para organizar uma petição nacional contra essa designação anti-cultural.
Mais uma vez refiro que o que está em causa em relação ao tal produto a que, infelizmente, chamam “alheira de bacalhau”, não é a sua qualidade. Por acaso, pessoalmente, achei um produto desconsolado e sem garra. Onde está a gordura gostosa que lhe permite auto-cozinhar-se? É sabido que um produto entra mais facilmente no mercado dando-lhe uma designação conceituada. Assim, basta verificar que nos supermercados onde a encontrei à venda está sempre na secção das carnes. Por que não a colocam, ou experimentam, na secção dos peixes? Será que querem promover o bacalhau a carne?
Aqueles que leram o meu primeiro texto “Contra a Alheira de Bacalhau”, inicialmente publicado no jornal Notícias de Trás-os-Montes e Alto Douro, e depois disponível no meu SITE www.virgiliogomes.com, perceberam que a minha indignação vem das questões sociais e culturais associadas à alheira. E expliquei longamente o que é a essência da alheira. Este enchido tem vindo a evoluir ao longo do tempo nas gorduras e nos temperos. Mas nunca se desviou do seu fundamento: a matança do porco, a carne e o pão. Na altura citei alguns vultos da cultura que se referiram à alheira e à tabafeia. A discussão neste momento nem deverá centrar-se de onde vem a alheira e a tabafeia. Já é uma questão menor e apenas revela outro sinal da evolução. Tanto em Vinhais, Bragança, Vimioso ou Miranda do Douro, todas se chamarem alheiras, e com os mesmos elementos comuns. Se no anterior escrito citei Leite de Vasconcelos, Raul Teixeira e Abel Salazar, desta vez vou ficar-me por Miguel Torga. No seu extraordinário texto elaborado em 1941 e que intitulou “Um Reino Maravilhoso”, quando se refere à riqueza da produção agrícola onde elege a castanha como o seu maior produto, escreveu: “…Crua engorda os porcos, com a vossa licença… É destes que se tem de partir para chegar à trindade tradicional do reino: os presuntos, as alheiras e os salpicões.”
Miguel Torga voltou a publicar este texto no seu extraordinário “Portugal”, em 1950. Foi anteontem. A alheira vem do porco. E o porco ainda é carne!
Não vale a pena argumentar que os “Velhos do Restelo” ainda existem e que mexem… Velhos do Restelo ainda estariam a defender a Inquisição. Aqueles que me conhecem sabem bem o trabalho que tenho desenvolvido, caminhando para a modernidade sem atraiçoar a tradição. E continuo nesse caminho.
Mas volto à questão fundamental: por que não se chama ao produto “enchido de bacalhau”? Já temos tantos movimentos de destruição cultural que nos faz pena que seja o último local expectável, Mirandela, a desenvolver esta diatribe.
Tive o prazer de saber que um grande restaurante, e de gabarito, depois de entender que a questão é cultural – a nossa herança –, alterou a designação de alheira de bacalhau para enchido de bacalhau. A Tradição Portuguesa, e eu, agradecemos e aplaudimos o gesto.
Comam o enchido de bacalhau, mas não lhe chamem alheira.
Força com as nossas alheiras tradicionais.
Bom Apetite!
© Virgílio Nogueiro Gomes
Publicado no jornal Nordeste em 28 de Julho de 2009