copiaalheirabacalhau.jpg

Pela primeira vez publico um texto que não é da minha autoria. A guerra contra chamarem "alheira" ao enchido de bacalhau continua.

 

Alheiras de bacalhau?!

A maioria dos leitores, menos os impedidos por razões de religião e fundamentalismo vegetariano, já degustaram uma alheira. Na massa de pão trigo, entre outros ingredientes incorpora-se, naturalmente, o prestável e poderoso alho, carne de porco proveniente de algumas partes do cochino, após ser objecto de várias preparações, podendo ser enriquecida com caça e aves de curral. A alheira é o enchido de massa de maior representação de uma parte de Trás-os-Montes, sendo melhor conhecida a de Mirandela, por razões relacionadas com a história dos transportes no território do Nordeste, quando irrompeu o caminho-de-ferro naquelas paragens. Nada mais. Se “somos o que comemos”, a alheira é expressão de um povo isolado, marcado pelo cerco de serras e montes, obrigado a aguçar o engenho para superar a necessidade pois a escassez era pão-nosso de todos os dias, enquanto a abundância marcava presença nos dias nomeados ou solenes. A alheira tinha um tempo para ser confeccionada, de igual modo outro para ser consumida, só por isso nunca poderia ter sido usada como disfarce dos judeus a fim de escaparem às arremetidas dos inquisidores. No essencial a alheira é produto baseado no porco, daí ter causado o maior espanto o facto de uns fabianos de Mirandela terem tido o arrojo de apresentarem alheiras de…bacalhau. O estupor pelo atrevimento parece ter provocado o mutismo no circulo gastronómico mirandelense, mas noutras paragens sucedem-se os comentários, por mim vou continuar a protestar devido à aleivosia praticada contra a tradicional e genuína alheira, recusando-me a tomar refeições onde a impostora seja apresentada na lista. Não, não estou a exercer censura sobre o restaurante, apenas faço notar a evidência: um restaurante digno desse nome não se atreve a servir um produto baseado na adulteração de uma receita que faz parte da cozinha escrita e histórica transmontana, logo protegida pela memória inserida em documentos de diversas matrizes e proveniências. Os xico-espertos podem ter êxito durante um determinado período, depois a espertina deixa de render lucros, no entanto, o mal provocado é enorme. A Senhora Kerry, uma das mulheres mais ricas do Mundo, pense-se na marca Heinz, em entrevista concedida ao Expresso afirmou gostar de alheiras de Mirandela. A rapaziada daquela cidade não soube aproveitar o ensejo, mas imaginem que a dita milionária volta a Portugal – é de ascendência portuguesa – e lhe apresentam um enchido com bacalhau a quem chamam alheira. Pragmática pedirá o ketchup da sua marca, polvilhará a mistela e entre risos dirá: o bacalhau está mofado, valeu o molho. Depois vai pedir uma alheira a sério, mas de Mirandela não.

© Armando Fernandes

Publicado no Jornal O RIBATEJO em 10 de Julho de 2009