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Alguns de vós ainda estarão recordados da minha crónica publicada há mais de dois anos e com o título “Que mal nos fez a alheira?”. A ligeira mudança no título tem a ver com a minha indignação pelos maus-tratos que dão à alheira. E, se calhar, competirá a nós, transmontanos e alto durienses, militarmos numa campanha em favor da alheira. Naquela crónica fazia um pequeno historial e referia o estudo laboratorial que foi efectuado à alheira crua, tendo sido descoberta uma bactéria que é eliminada pela alta temperatura, o que significa a eliminação da bactéria pela confecção final da alheira. Apesar de não haver perigo para a alimentação, aquela notícia fez cair nas semanas seguintes a venda da alheira, em particular na zona de Mirandela. Depois queixava-me do modo como, genericamente, é confeccionada e apresentada a alheira em estabelecimentos de restauração. Acrescentava ainda sugestão de como deve ser servida.

Passado este tempo eis que a alheira é transformada por quem não sabe o que é a essência da alheira. Já assisti à apresentação da alheira de bacalhau, vegetariana e não sei quantas mais variedades virão. Ultraje!

Os que me costumam ler já entenderam que sou um grande defensor da evolução culinária e dos avanços da modernidade na gastronomia. Uma coisa é evoluir outra é alterar. E sobretudo abandonar a essência de uma prática de preparação e confecção culinária. A primeira questão é saber qual a essência ou a base inalterável da alheira. Para muitos é o pão. Pois eu começo que a princípio da alheira começa na matança de porco. E é na matança de porco que vamos encontrar a essência da alheira. Não quero aqui discutir agora, tarefa que deixo para o meu amigo Armando Fernandes que sabe muito mais do que eu sobre este assunto, a questão de saber se a alheira tem origem nos judeus ou cristãos-novos para fingir comer carne de porco após as matanças e assim escapar dos denunciantes da Inquisição.

José Leite de Vasconcelos, na sua Etnografia Portuguesa, referencia a alheira no capítulo dos Alimentos de origem animal e como enchido de porco. Para apresentar o sucedâneo de enchidos de pão, e mais pobres, chama-lhes sacramentos, exactamente porque lhes faltam carnes e gorduras “afinal os autênticos sacramentos”. Na sua perspectiva as alheiras também eram chamadas de “Tabafeiras” , possivelmente quereria dizer "Tabafeias".

O Abade de Baçal também se refere ás alheiras, sempre, associadas à matança e um enchido de carnes. Para a Exposição Portuguesa em Sevilha em 1929, na brochura escrita sobre Trás-os-Montes, refere que em Bragança “se notabilizam como pitéus regionais deliciosos, de fama geral em todo o País tabafeias, fabricadas desde Outubro a Fevereiro…”

Do estudo que o meu amigo José Rodrigues Monteiro fez da correspondência de Raul Teixeira para Abel Salazar encontramos detalhes curiosos de dois homens que unidos pela cultura se prestavam a detalhes ditos comuns, ou porque eles talvez também já assumissem as artes culinárias integradas na Cultura. Com o devido respeito pelo trabalho publicado em 1985 na Separata do Boletim “Amigos de Bragança”, em carta de 26.10.34 escrevia Raul Teixeira a Abel Salazar que transcrevo:

“Por este correio segue, dirigida à Senhora sua Irmã, uma encomenda com tabafeias, que é como se chamam as alheiras a que ahi dão foros de especialidade bragançana.

Essas alheiras teem tanto de Bragança como eu de santo.

A especialidade d’aqui – convém acentuar, para que a História o registe – é a tabafeia.

Na altura competente mandarei ao meu Ex.mo Amigo aquilo que não é especialidade de Bragança, mas que constitui um bom acepipe, que Brillat-Savarin apreciaria sibaritamente: o salpicão, manjar este que V. Ex.a ainda durante este inverno há-de comer, querendo Deus e os homens, à lareira desta sua casa.

Primum vivere, deinde philosophare. Isto é, traduzido em vulgar: - depois da comesaina, a Arte.

…”

Este é apenas o exemplo de como não devemos tratar com leviandade estas coisas de comer, que atravessaram gerações e se instalaram nos nossos hábitos. A Cultura também se desenvolve pelos comportamentos dos seus povos. Quando o Governo declarou a Gastronomia como Património Cultural não estaria a prever estas diatribes culinárias.

Com estes meus escritos não ponho em causa o produto rotulado com o nome de alheira de bacalhau e alheira vegetariana. O que eu questiono é que lhes chamem alheiras. Não quero nem saber se se trata de uma conveniência comercial ou de estratégia associada a planos económicos. E repito a pergunta: qual é a essência da alheira?.

Não sei porque este País perdeu tanto tempo, e meios, a investigar se o Primeiro-ministro era engenheiro…!  Certo que a categoria de engenheiro está registada e controlada. O excesso de registos também pode ser claustrofóbico. Queremos melhor registo que a tradição de fazer e comer alheiras durante séculos?

Eu já comi as ditas alheiras de bacalhau e vegetariana. E guardo a factura para comprovar. Que desconsolo. Sente-se de imediato que há qualquer coisa que não bate certo. E quero relembrar agora os melhores métodos para preparar a alheira. Ou como os transmontanos, que a criaram, as costumam comer.

A forma mais simples, e como petisco, é sobre uma grelha à lareira. E porquê tão simples? É que a alheira contém gordura suficiente para se auto-cozinhar. Depois a outra forma mais corrente que consiste em colocar a alheira numa frigideira, sendo a alheira previamente picada. Pela acção do calor a alheira vai expulsando a gordura que permite que ela fique estaladiça. Eu aprecio quando a alheira rebenta e satisfaço-me comendo a parte crocante que está em contacto com o metal. Claro que os acompanhamentos ideais são os grelos cozidos ou salteados.  A partir de meados do século XIX também se acompanham por batata cozida.

Em Fevereiro passado, estava eu de férias no Brasil, quando recebo mensagens de Girona onde estava a decorrer um evento gastronómico no qual estavam presente alguns amigos meus que conhecem a minha defesa da alheira tradicional. E como gozando comigo, enviam-me fotos da intervenção que referiu a alheira de bacalhau. Só os prazeres do Brasil e do seu clima não provocaram a minha ira, que agora desenvolvi.

Volto, repetindo, que a essência da alheira começa na matança de porco. Depois o envolvimento de pão em gorduras animais. E quando se sair disto não há mais alheira.

Acontece que na zona lisboeta se habituaram a fritar a alheira, retirar-lhe a pele (tripa), acompanha com batata frita e ovo estrelado. Coitados dos sofredores de colesterol…!

Ora este método de preparar a alheira parece o menos correcto e sem tradição regional.

Recentemente serviram ao almoço no comboio Alfa uma alheira. Vindo de Lisboa receio sempre o serviço de alheira. Servem uma massa de alheira envolta em couve e sobre a qual colocaram dois ovos estrelados de codorniz. Ao primeiro corte da alheira surge uma malagueta inteira com cerca de quatro centímetros. E o que irrita mais é a atitude peregrina de retirar a pele da alheira. Quando, neste caso, retirei a folha de alumínio, de cobertura do prato, os ovos vinham agarrados a essa película que ao serem puxados ficam retidas as gemas, e apenas de soltam as claras. Almoço de fome tendo a sorte de ter podido repetir a sobremesa.

Talvez por essa ideia errada do que foi e é a alheira é que apareceram as alheiras de bacalhau, e as vegetarianas. Estas precisam, de facto, de uma fritura. Mas nem isso chega para serem um produto atractivo. Pelo menos para mim e outros amigos meus com os quais contactei antes destes escritos.

Porque não lhe chamaram simplesmente enchido de bacalhau e enchido vegetariano? Claro que o nome alheira é mais comercial. É mais fácil vender. E é ver nos supermercados que visitei onde é que estão essas alheiras: junto às alheiras clássicas no sector de enchidos e carnes. Por favor, chamem o que quiserem a estes produtos mas, não lhe chamem alheira. Reafirmo que não está em causa o produto, apenas a designação.

Mas o que é ainda mais estranho é que estes produtos nasceram exactamente em Mirandela. Mirandela que se reclama a capital da boa, e da melhor alheira! Acharia possível que nascessem em terras de tradição bacalhoeira como Aveiro e Viana do Castelo. Duvido que estas terras cometessem o pecado de chamar alheiras àqueles produtos.

Que os transmontanos e alto - durienses saibam fazer frente a este atentado à sua Cultura. Às suas tradições. E desafio também a Confraria dos Enófilos e Gastrónomos de Trás-os-Montes e Alto Douro a não aceitar esta designação.

Contra a alheira de bacalhau, contra a alheira vegetariana, marchar, marchar!

Comam alheiras das tradicionais, que deveriam ser as únicas.

BOM APETITE!

 

© Virgílio Nogueiro Gomes