Estive muito hesitante ao escrever esta crónica e sobretudo ao título que lhe deveria atribuir. Apetecia-me também intitular: Como alguns clientes podem destruir a imagem de um restaurante. Chamar os clientes pelos nomes ainda não é uma prática comum e, depois, há sempre as limitações, quantas vezes de conveniência, para apesar de tudo, para que continuem como clientes. Emoções de dependência discreta entre comprador e vendedor.
Fui educado profissionalmente com a divisa de que o “Cliente tem sempre razão”. Quando passei à fase seguinte, na qual já era eu o educador, mantinha a divisa mas acrescentava-lhe comentários. Sobretudo que nunca se deve criar confronto com o cliente muito embora ele não tenha sempre razão. O cliente tem uma postura de aquisição de bens e serviços e desconhece, muitas vezes, as regras desse serviço para o qual fomos formados ou para o qual herdámos uma forma de estar consensual em toda a Restauração. O cliente, também na sua posição de decisor e pagador, torna-se, felizmente, poucas vezes com atitudes de arrogância.
A Restauração tem como principio fazer as vontades do cliente e quantas vezes adaptar a prestação do serviço às exigências, ou pedidos, dele. O pior é nos imprevistos e alterações de última hora.
Durante a minha vida profissional passei por vários embaraços, situações de crise provocadas pelos clientes e nas quais a solução fica sempre para o estabelecimento. Alguns exemplos ainda me amarguram a memória: um casamento de cento e vinte pessoas; só que no dia apareceu a totalidade dos marcados e mais catorze crianças. Os clientes esqueceram que a cadeira de uma criança ocupa o mesmo espaço de uma cadeira de adultos e depois o imprevisto atraso para colocar mais locais e o drama de os pais quererem os seus filhos na sua mesa. Outro muito mais grave foi um jantar em espaço alugado com serviço para duzentas pessoas e depois apareceram mais oitenta e sete. O grave é que não é um espaço de actividade regular, transportaram-se cadeiras até de táxi e, no final, comida esticada e atraso de noventa minutos para o início da refeição. Que teria acontecido se houvesse recusa do serviço, na hora? No final uma refeição mal servida, serviço deficiente por falta de empregados de mesa, e prestígio do estabelecimento afectado. Não seria possível, nem eticamente correcto, fazer um comunicado aos clientes informando-os de que a culpa seria deles. Teria mais alguns exemplos para dar! Lamentavelmente.
Mas estes acidentes levaram-me a aperfeiçoar o documento de preparação de serviços especiais e tinha um questionário exaustivo que permitia diminuir as situações surpresa como as atrás citadas. A elaboração destes roteiros de trabalho ajudam a garantir uma maior qualidade e tomar acções preventivas para os azares.
Vou pegar num exemplo recente, no qual eu era convidado, e com a experiência do passado, entender melhor o que aconteceu e afirmar que foram os clientes que tiraram o prestígio que a refeição deveria ter tido, e o risco de promoção negativa que fica para o estabelecimento.
Estamos num estabelecimento de luxo, espaço de muita dignidade e força decorativa, Empresário bem colocado no mercado com locais de prestígio, um Chefe de Cozinha de alto gabarito. Apesar de ser convidado, tinha abandonado recentemente a organização que encomendou o jantar com que se pretendia homenagear alguns elementos ilustres, apresentar o estabelecimento e instalar a nova Direcção da delegação de Lisboa. E ainda o convite obrigava a fato escuro. Lá estava eu de fato escuro e gravata, apesar de cada vez mais achar que não é a fatiota de dá a importância a um evento.
Havia tudo para ser uma refeição brilhante. Soube que de véspera haveria pouco mais de uma trintena de participantes e, no próprio dia, foi confirmado cerca de noventa, a totalidade do restaurante. O estabelecimento reagiu com prontidão, as mesas foram colocadas, talvez com mesas com um comensal a mais para o tradicional serviço de luxo, e a cozinha preparou-se para o acontecimento. Informo desde já que se tratava de um menu degustação com cinco serviços.
Muito embora os estabelecimentos estejam preparados para alguns atraso, neste caso, e sabendo a organização as dificuldades deste menu, a refeição começou com uma hora de atraso sem que a cozinha estivesse informada, a não ser que haveria atraso.
Depois de toda a gente sentada, e sem que nada o previsse, há um discurso quando nesta organização, por tradição, não há discursos durante as refeições, situação que a cozinha conhecia. Quando se preparava para servir… o fatídico discurso. Jantar marcado para as vinte horas e trinta minutos, são vinte e duas horas.
Finalmente surge a entrada, uma surpresa do chefe como “amuse-bouche”. Estávamos todos contentes com o começo do serviço. De seguida “Lavagante escalfado com poejos, gelado de leite de coco e kefir, creme de manga e laranja, palmitos e iogurte escorrido”, fantástico. Claro que o ritmo de velocidade da refeição estava muito irregular pois muitos convivas aproveitaram esta refeição como evento social e muitos conversavam mais e esqueciam-se de comer. Naturalmente enquanto todos não tivessem terminado o serviço não podia avançar. Lá foi seguindo e depois servem “Risotto de lima Mandarim com miolo de amêijoas e espargos trigueiros, caranguejo de casca mole envolvido em sementes”, grande surpresa e excelente mistura. Continuamos a refeição com “Carré de borrego corado com molho de hortelã, tartelete de farinheira com ovo de codorniz e trufa”, bem conseguido mas os convivas começam a manifestar cansaço de estar à mesa. Era meia-noite. Atrevido como sou, e também porque a maioria dos empregados me conhecem, perguntei porque não serviam a sobremesa. Elegantemente respondeu-se que alguém teria mando atrasar… à meia-noite? Afinal havia um aniversário numa mesa, cantaram os parabéns, fizeram brindes, trocaram cumprimentos e a sobremesa não saía. Quinze minutos depois, e com o à vontade que alguns já me conhecem, pedi licença às senhoras e ao anfitrião da mesa para me ausentar. Todos concordaram por mim, saindo a quase totalidade da mesa à meia-noite e trinta minutos sem a sobremesa. O que aconteceu? Mais um discurso não previsto. Hesitação em chamar a brigada de mesa que só deveria vir no final da refeição mas que, se antecipava pelo adiantado da hora. Não assisti aos derradeiros momentos que terminaram pela uma hora da manhã. Mas já agora a sobremesa foi um composto variado com “Coulant de chocolate, torta de laranja, sorbet de maçã verde, parfait de framboesas sobre brownie de café. E café.
Refiro as sobremesas, apesar de não ter comido nessa ocasião, mas que já conhecia de outras refeições normais.
Perdoem-me este desabafo descritivo mas, se não tivesse já conhecido este estabelecimento, e apreciado refeições a ritmo normal, garanto-vos que teria dificuldade em voltar a este local de vontade próprias. Quantos dos presentes, que aí foram pela primeira vez, ficaram com vontade de voltar? Quantos são capazes de julgar que a sucessão de acontecimentos ultrapassaram o próprio estabelecimento?
Pois é. Quantas vezes nos apeteceu gritar aos clientes, e não o fazemos porque eles têm sempre razão?
Já deixei de frequentar um restaurante porque pedi para me refrescarem, em pleno Verão, um vinho jovem e leve mas que era tinto. O empregado disse arrogantemente que naquela casa não há vinho tinto fresco e, o que eu estava a pedir, era porque não sabia beber vinho e não sabia nada de vinhos. Eu não pedi um vinho fresco tinto, mas para me refrescarem na hora um vinho tinto. Não era um empregado qualquer, era o patrão. Não reclamei, fiz o papel de cliente simpático que não reclama, mas não volta. São os clientes mais perigosos.
Segundo um estudo efectuado há uns anos em Portugal constatou-se que apenas trinta por cento dos clientes insatisfeitos é que se manifestam. Que pena. Porque um cliente que reclama nós ficamos a conhecê-lo, podemos explicarmo-nos, e podemos muitas vezes recuperar o cliente. Tratemos as reclamações como um instrumento de negócio.
© Virgílio Nogueiro Gomes
© Foto Adriana Freire