Eu não sou um especialista em cinema. Tenho as vontades simples de ver cinema por prazer. Não vejo filmes de violência explícita nem de acções psicológicas violentas. Deixei de frequentar salas de cinema com a moda das pipocas e do seu cheiro continuado. Depois também pela impertinência de jovens que falam ou namoram ruidosamente nas salas. Estou numa fase de reconciliação com as salas de cinema, algumas já sem cheiros e também outras com conforto e disciplinadas.
Quando gosto de um filme vejo-o várias vezes, em casa. Aprendi, a cada vez que o revejo, a encontrar detalhes que não se evidenciavam à primeira vista. Um deles é a componente gastronómica dos filmes. Outro é a música. Em casa, sempre que posso, vejo os filmes na sua língua original e só nas dificuldades leio as legendas.
Mas vou voltar ao tema que nos interessa, e passo à análise de filmes que me marcaram pela força da sua mensagem gastronómica. Terei o cuidado de apenas referir filmes que entraram no circuito comercial português e, portanto, com legendas. E também disponíveis em DVD. Claro que esta minha crónica não é um inventário de todos os filmes com temática gastronómica. Apenas vou citar alguns. E alguns que, só quando os vi pela segunda vez, descobri a força que a envolvente comida e bebida lhes conferia. Duvido que alguns realizadores o tenham pensado como tal. Evidentemente que há filmes como “Vatel” ou “Como Água para Chocolate” em que essa preocupação esteve fortemente marcada na sua realização. Tentarei citar os filmes por ordem cronológica da acção.
Frederico Fellini realizou um filme espectacular, “Satyricon”, em 1972 que provocou algum alarido. Apresenta uma sociedade romana em decadência no tempo do imperador Nero. As intrigas e as disputas são alternadas com apresentações do quotidiano e também com os banquetes que faziam o completo da vida em sociedade. Muito embora não seja focado para a perspectiva dos banquetes, eles lá estão e fazem parte daqueles detalhes que, às vezes, só vemos quando para isso alertados. Não deverá criar surpresa a variedade de produtos alimentares naquele tempo. Já existiam mas apenas reservados a classes mais altas. Ser “empregado de mesa” é que não seria fácil…!
Voamos agora até 1671. O filme “Vatel”, realizado em 2000 por Roland Joffé e com interpretações de Gérard Depardieu, Uma Thurman e Tim Roth, leva-nos à estada corte de Luis XIV que decorreu no palácio do Príncipe de Condé. O intendente do Príncipe, Vatel, era famoso pela sua cozinha e capacidade para organizar grandes festas. O próprio Rei gostaria de o ter ao seu serviço. Com esta estada, o Príncipe esperava convencer o Rei a contratá-lo para a chefia dos exércitos e, assim, recuperar as suas finanças, que ameaçavam ruína. Vatel tinha, portanto, uma missão importantíssima…! As festas/banquetes merecem ser vistas várias vezes para fixar todos os detalhes. Para além da qualidade da comida, o efeito espectáculo e a forma de a servir deslumbram, quase parece estarmos a assistir a um espectáculo teatral. Soberbo.
Outro filme que me encantou foi “A Festa de Babette”. Premiado com um Óscar para o melhor filme estrangeiro, foi realizado em 1987 por Gabriel Axel, baseado no livro com o mesmo título, de Karen Blixen, que usava também o nome literário Isak Dinesen. Conta-nos a história de uma francesa que se refugia na costa da Noruega, ficando ao serviço de duas senhoras. Antes de abandonar a França, tinha comprado um bilhete de lotaria, e, anos depois, teve notícia de que foi premiado, tendo recebido o correspondente prémio. Apesar de o filme nos poder parecer lento e de pouca acção, a famosa festa que Babette oferece no final para agradecimento da hospitalidade revela-nos o que de melhor se poderia imaginar em termos de grande banquete. Babette importa de França algumas iguarias e os vinhos, e aos convivas parece-lhes estar a pecar em continuado. Alegre pecado reconhecido depois. O refinamento gastronómico é elevadíssimo. A descrição detalhada desta refeição e os vinhos a acompanhar constituem um hino à gastronomia francesa, de fazer inveja nos tempos que correm. Segundo a “Newsweek” este filme apresenta “uma mistura irresistível de humor irónico e forte humanidade”. A refeição final poderia ser uma prova de discussão entre gastrónomos e exemplo animado nas escolas hoteleiras.
Em 1992, Alfonso Arau realizou o filme “Como Água para Chocolate”, que já se transformou num clássico. Baseado no livro, com o mesmo nome, de Laura Esquível, assistimos ao drama das famílias de província, complicadas e de regulamentos familiares rígidos. Ao assistirmos ao filme deparamo-nos com um drama familiar em que a protagonista é a vítima da cozinha, que quase se transforma numa lenda. A acção decorre no México, país onde o chocolate adquiriu o estatuto de alimento dos deuses. No México, o chocolate dilui-se em água e não em leite. E a expressão de “estar como água para chocolate” significa estar sexualmente excitada. A Tita, a protagonista que cozinha e transforma os alimentos, atinge um dos momentos mais altos quando faz o bolo de noiva para a sua irmã, e que vai casar com o rapaz por quem ela própria está apaixonada. As suas lágrimas misturam-se com a massa do bolo, contagiando aqueles que o comem com a sua tristeza. Mas também usa grandes doses de mel, alho, pimenta, milho e pétalas de rosas vermelhas que… encantam e fazem maravilhas.
Pedro Almodôvar brinda-nos em 2007 com uma história de mulheres, incrível, no seu filme “Voltar” (Volver). O jeito peculiar de se deter em pormenores do quotidiano cria entusiasmos consecutivos: a identidade do povo espanhol. Três gerações de mulheres que se solidarizam com os problemas das outras, depois de um crime mortal. Nesta busca de soluções, e entre elas a do dinheiro, a protagonista Raimunda, interpretada pela grande Penélope Cruz, surge a oportunidade de explorar temporariamente um restaurante. Não sendo profissionais, confeccionam com rigor o que aprenderam a cozinhar em casa as suas heranças femininas do passado. Coisas simples mas bem feitas. O caminho para a qualidade a partir do simples. E, como exemplo, posso referir “Tortilha de Batata”, “Mojitos” e “Pudim de Leite”. Um filme com enredo complexo mas com a qualidade do realizador em lhe emprestar um sentido irónico, e com uma marca de humor permanente.
Também recente foi o filme “O Segredo de um Cuscuz”, de Abdellatif Kechiche, com um espírito diferente de todos os anteriores. Não se aprende a cozinhar com este filme, e mesmo a receita do cuscuz parece uma ilustração para uma história de famílias. O filme é uma história contemporânea que reflecte as sempre difíceis integrações dos emigrantes, e quanto a comida poderá ser um elemento para restaurar a saudade.
História de um pai que tenta manter unida a sua família. Com todas as adversidades e num esforço final que acarreta um sonho de toda a vida: abrir um restaurante cuja especialidade seria o cuscuz. Este filme obteve o prémio de melhor filme sem cenários; com baixo orçamento, foi tudo filmado em cenários reais. O cuscuz é um elemento transversal que une a família e que provoca este estado convivial à volta da mesa. Filme realista com uma grande mensagem de humanidade e que revela como atitudes em grupo têm que animar a todos e a falha de um pode provocar a destruição do projecto. Faz lembrar a falta desta união das famílias á volta da mesa.
O comentarista do Expresso, Vasco Baptista Marques, escreveu: “Um magnífico Kechiche para ver com os cinco sentidos”, ou Sérgio Santos da Timeout: “A dança do ventre de Hafsia Herzi, perto do final, entrou instantaneamente para a história do erotismo no cinema”. Outra razão para ver o filme!
Há muitos mais filmes para ver e rever. Sem tentar ser exaustivo, lembro: “A Grande Farra”, “Chocolate”, “Preciosa Iguaria”, “Tampopo”, “As Férias da Minha Vida”, “Maria Antonieta”, “A Grande Noite”, “A Idade da Inocência”, “Ratatatouille”, "Amor aos Pedaços",e tantos outros.
É verdade, não escrevi sobre filmes portugueses. Quero lembrar o DVD intitulado “Os Gestos dos Sabores” produzido pela Associação As Idades dos Sabores no qual estão registadas tradições portuguesas antes que se percam. Porque o cinema também nos pode ajudar a manter as tradições. Numa receita de cozinha há um elemento indescritível pela escrita que é o modo de fazer: os gestos.
Bom Apetite para o Cinema.
© Virgílio Gomes