Há muitos anos que deixou de utilizar-se a expressão “ir à terra”, expressão provocatória de arreliação aos naturais de Lisboa ou Porto por não terem “terra”. Estas grandes massas de população que desenvolvem as capitais e as preenchem, nunca perdem a vontade de, periodicamente, voltarem ao sítio onde nasceram, onde reencontram as suas raízes e onde tantas vezes regeneram a alma para regressar ao bulício das grandes cidades. Mas nestes encontros de muita gente, os naturais das grandes cidades não entendiam muito bem este sentido do “ir à terra”. E nós, ou eu, particularmente, dizia-lhes que eles não tinham “terra”. Lisboa e Porto não são “terras”. Aqui parece ilustrar-se bem o termo saudade. Talvez tivesse sido essa necessidade de sentir a proximidade das “terras” que determinou o desenvolvimento das Casas Regionais.
Esse movimento não se aplica, contudo, à minha pessoa. Tenho um sentido de voltar à “terra” orientado por outras práticas, que não forçosamente deslocar-me ao sítio. Em Lisboa, tenho a presença constante de Trás-os-Montes e Alto Douro através de uma prática continuada ligada à cozinha e à mesa. Se é de Folar ou de Bola Sovada, abasteço-me na Nilde. E já sei também onde encontro porco bísaro e vitela mirandesa. Se as saudades são de outro qualquer desejo, lá vou cozinhando em casa ou presenteando-me em casa de outros patrícios com refeições que bem me fazem lembrar a “terra”. A sorte de ter sido educado, até à idade adulta, em Bragança e ter fruído ainda da tradição das refeições em família, instalei instintivamente umas fórmulas decorrentes da educação do gosto, que ainda mantenho. A tradição da mesa é dos capítulos com que os portugueses, de uma maneira geral, celebram as saudades das suas origens. Por isso, formam uma bolsa de tradições alimentares um pouco por todo o mundo. O exemplo mais recente de instalação de uma tradição portuguesa que entrou nos hábitos alimentares de um país é o nosso Bacalhau à Gomes de Sá (traduzido por Gratin de Morue), que é quase um prato nacional do Luxemburgo. Não sabem o que estão a perder estas novas gerações que, por comodismo, e alguma preguiça educacional, rapidamente decoram o número de telefone do distribuidor de pizzas!
Este ano, pelo Natal, voltei à “terra”. Época de fartura, que relembra a quebra do jejum imposto ainda na época medieval, que obrigava à penitência da gula durante um tempo alargado. Por isso, na véspera, ainda comemos o bacalhau e o polvo, e, só depois, a partir da meia-noite ou após a Missa do Galo, se permitiam as carnes: o peru, que veio por moda substituir o galo ou o capão. A alteração carnívora mudou, por facilidades, ou por um simples acesso à novidade? Estes festejos natalícios são bem o exemplo da absorção pelos crentes dos festejos profanos de épocas remotas. Neste data celebrava-se o solstício invernal até à fixação do dia 25 como data da comemoração do nascimento de Cristo, pelo Papa Júlio I no século IV.
Os doces, com a grande variedade com que agora se apresentam, são uma tradição instalada a partir do século XVI, com a chegada, a Portugal, do açúcar de cana do Brasil. E, claro, o Bolo-rei, mais recente, do século XIX, que se transformou num doce nacional.
Repito que, quanto mim, para “voltar à terra” não é necessária a deslocação geográfica. Mais importante é o manter das tradições que me deslocam emocionalmente. E com grande incidência à MESA.
Mas este ano “voltei à terra” para passar o Natal. Assisti a alguns progressos e comentei, em laia de lamento, alguns aspectos. Aplausos para a divulgação cultural dos cinco museus de Bragança. Mas por que fecham todos à segunda-feira? Às segundas não podem visitar-se museus, e por que não um ou dois fecharem às terças-feiras? Assim, se sabem, muitos turistas não ficam mais um dia. Já em anterior visita, manifestei o meu agrado pela cafetaria do Centro de Arte Contemporânea Graça Morais. Fiquei surpreendido com a oferta de doçaria, com incidência nas castanhas e com qualidade. Voltei lá e, para meu espanto, já não encontrei nada confeccionado com castanhas. Teria que encomendar. Não é assim que se marca uma referência, que se atraem clientes e se fidelizam. Já agora, a propósito de castanhas, a nossa terra foi pródiga no seu abastecimento até que estas foram destronadas pelas batatas. Não havia um receituário de doçaria que as incluísse. Nestes tempos de nova tendência culinária em que a essência da qualidade passa pela excelência dos produtos, aceito muito bem que se inventem todas as receitas com castanhas aí produzidas. Lembro-me bem do Ouriço de Castanha e também do Marron Glacé. E porque não abandonar estar designação clássica da doçaria francesa e, como as nossas são diferentes, chamar-lhe Castanha Glaceada com Chocolate?
Não pensem que estou a referir apenas desgraças. Há vários restaurantes que gosto bem de frequentar e são uma referência gastronómica regional. Cada um no seu género, mas os meus preferidos são o “Geadas” e o “Manel”.
Esta região tem evoluído bastante e vou referir apenas dois restaurantes que já são uma marca a nível nacional: “Flor de Sal”, em Mirandela e “D.O.C.”, entre a Régua e o Pinhão. Estes dois restaurantes representam a nova modernidade e também a forma como defender os produtos do “terroir” com confecções novas mas oriundas na tradição. Só consegue fazer cozinha contemporânea ou moderna aquele que dominar as artes tradicionais. No “Flor de Sal” pontua o Chefe Manuel Gonçalves e no “D.O.C.” o Chefe Rui Paula, que recentemente publicou um encantador livro no qual apresenta a sua cozinha. Curiosamente, desvela duas receitas com a designação da região: “Milhos à Transmontana” e “Cabritinho Transmontano”.
Recentemente, veio a lume, em Lisboa, o livro “Palavras do Olival”, da autoria de António Manuel Monteiro, editado por João Azevedo Editor, ambos de Mirandela. Tive a honra de apresentar esta obra a pedido do autor. Para mim, este livro é um dos melhores três livros de 2008. Findos os discursos fomos presenteados com um cocktail que foi um verdadeiro banquete de degustação, à volta da azeitona e do azeite, e que deixou os lisboetas boquiabertos com a variedade e a excelente confecção. Para isso contribui o Chefe Manuel Gonçalves, a Escola de Hotelaria de Mirandela e a Confraria dos Enófilos e Gastrónomos de Trás-os-Montes e Alto Douro. No intuito de vos levar a salivar neste início de ano vou citar as iguarias servidas: sopa de abóbora com gengibre e um fio de azeite extra-virgem de Trás-os-Montes e lascas de queijo Terrincho, alcaparras de azeitonas transmontanas, pasta de azeitonas, bola sovada, almôndegas de negrinhas de Freixo, tronco de alheira, azeite e azeitona, marmelada de madurais, bola de porco bísaro, tostinhas com alheira, queijo Terrincho em azeite, torradas com azeite novo, rojões de porco bísaro, torta de laranja com pasta de azeitona, bolachas de azeite e azeitona e Chá de rebentos ladrões das verdeais. Claro que com vinhos da região a acompanhar. Transmontanos no seu melhor!
Afinal, como referi no início desta crónica, verificamos que tão bom pode ser ir “à terra” como a “terra” vir até nós. E muito mais haveria para escrever.
BOM ANO e BOM APETITE
© Virgílio Gomes