BUTELO e CASULAS

Este enchido transmontano é, possivelmente, um dos mais desconhecidos do público em geral. Os transmontanos dedicam-lhe uma afeição especial e refeição com ele é quase ritualizada. É titular do evento gastronómico que o Município de Bragança organiza pelo Carnaval e, também a Confraria do Butelo e das Casulas organiza o seu capítulo anual integrado naquelas festividades.

O Butelo e as Casulas (cascas para alguns) são bem o exemplo da sustentabilidade que já se praticava e não um discurso para o futuro. O futuro é tanto mais certo ou seguro se bem conhecermos o passado, e dele recebermos ensinamentos. O butelo é mais um exemplo de que do porco tudo se come e nada se estraga. As casulas é um sinal de prudência em guardar, conservando pela secagem, um produto vegetal para as refeições de inverno. Curiosamente encontrei outros termos populares para “Casulas”: “Cascas”, “Casacas”, “Palhadas”, “Palhoças” e “Vasas secas”.

Em minha casa a refeição com Butelo anunciava o fim do Carnaval e a chegada da Quaresma. Era quase “enfardar” pois iria chegar ao período da abstinência das carnes. O Butelo comia-se ao almoço no domingo ou terça feira de Carnaval. Depois voltava-se ao butelo somente no ano seguinte. Comida da época!

Por curiosidade apresento parte de um texto da minha Mãe, do seu caderno, e que denomina o butelo de “botelo”. Não irei agora escrever sobre as teorias, que existem, sobre qual será a denominação mais adequada:

 

 

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Digitalização de parte do texto de minha Mãe

 

Lendo a Antiguidade Clássica encontramos no livro De Re coquinaria, de Marcus Gavius Apicus (25 a. C. – 37 d. C.), O Livro de Cozinha de Apício, traduzido e anotado por Inês de Ornellas e Castro, Relógio de Água, 2015, no livro II refente a Picados, Salsichinhas BUTTELUM (como significado de chouriço de sangue), que, apesar da semelhança com o nosso Butelo não tem qualquer relação a não ser produzido a partir do porco.

Será que é uma herança dos Buchos Recheados que se encontram pela Europa do Sul? Vendo agora bibliografia portuguesa, encontramos em 1936, no livro Culinária Portuguesa de OLLEBOMA (António Maria de Oliveira Bello), duas receitas: uma para “Bucho de porco recheado à moda do Freixial (Tomar)” e outra de “Bucho de porco recheado à Transmontana”. A receita denominada à “Transmontana” aproxima-se mais da atual produção de butelos. E transcrevo: “…cortam-se as costeletas em bocados de três a quatro centímetros, misturam-se com uma cebola mediana cortada miudinho, rectificam-se os temperos de sal e pimenta e recheiam-se com eles o bucho em cru.” As costeletas estiveram em vinha d’alhos durante sete dias! Depois de recheado, vai para o fumeiro durante três semanas e depois o bucho cai cozer em água com sal. Não é também o nosso butelo!

 

 

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Panela onde cozeram os butelos

 

É Maria Odete Cortes Valente, Cozinha Regional Portuguesa, 1ª ed 1973, e na nova edição de 1995 – no volume Trás-os-Montes, edição do Círculo de Leitores que nos sugere uma receita Butelo cozido com Casulas, e apresenta as diferenças com Bucho. Aqui poderei saber a resposta para esta inclusão. A autora viajou por todo o país para atualizar e acrescentar os trabalhos anteriores. O marido da autora, que a acompanhou neste périplo, era amigo do meu Tio Francisco Nogueiro que lhes forneceu algumas receitas que eram de prática na família. Para além do Pudim de Maçã, ter-lhe-á dado também a receita do Butelo. Curiosa esta passagem na receita: “… e enche-se na bexiga do porco (também se pode encher no bucho e no intestino grosso). Vai ao fumeiro cerca de vinte dias.” e ainda: “O Butelo constitui um prato principal, sendo uma tradição no sábado de Carnaval. Serve-se com casulas e batatas…”

Curiosamente também em 1995 no livro Trás-os-Montes à Mesa, de Isabel Gomes Mota (transmontana), editora Quetzal, apresenta uma receita de “Bucho Recheado (Gaiteiro)” com alguma semelhanças ao nosso butelo. É, no entanto, noutra receita denominada de “Bexiga Recheada” que faz uma referência à semelhança com o bucho e escreve: “Também se pode preparar como o bucho da receita anterior, mas é muitas vezes entregue às crianças para brincares como se fosse um balão.” Assim acontecia em minha casa para contentamento da garotada.

 

 

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Butelo desmanchado e enchidos cortados para empratar

 

O nosso ilustre Grão-Mestre António Manuel Monteiro, no livro Identidades que se comem, Âncora Editora, 2018, tem um capítulo “Botelos Transmontanos” no qual discorre numa vintena de páginas sobre as variadas denominações e possíveis origens desta tradição, textos que merecem ser lidos.

Adozinda Marcelino e Acúrcio Martins, no livro Memórias da Cozinha Transmontana, Âncora Editora, 2015, apresentam uma descrição do butelo e seus detalhes de tempero num texto denominado “Butelo”. Mais à frente outro texto, agora com denominação acrescida “Butelo do Dia do Entrudo”, no qual ensinam a forma de preparar o butelo e também regras para preparar e cozinha as casulas.

O Butelo e as Casulas, tiveram nos últimos anos uma grande divulgação e aposta no consumo em restaurantes, que é também uma prática recente. Em Lisboa fazem sucesso os almoços da Justa Nobre. Parece-me que o mais interessante é provocar os consumidores ou seguidores a deslocarem-se a Trás-os-Montes, e particularmente a Bragança para comer estas iguarias. Curiosamente acabei ler a crónica de Francisco José Viegas na edição do CM de sete de março, na sua escrita clara e informada, a sua opinião sobre este prato.

 

 

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Recentemente estive em Bragança, no período do Carnaval, e pude assistir ao Festival do Butelo e da Casula e também participei do Capítulo da Confraria do Butelo e da Casula que no final nos ofereceram um saco com um butelo, uma embalagem com casulas e ainda uma embalagem de azeite obrigatório para regar aquelas iguarias no prato. O saco, de grande valor para transportar pão, devendo esquecer os famigerados sacos de plástico que em nada ajudam o pão. Transportar o pão em sacos de tecido vem também recuperar uma tradição antiga e de qualidade. O pão precisa de “respirar”.

 

 

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Butelo desmachado para novas preparações

 

O facto da minha boa amiga Elisabete Ferreira ter sido eleita como a “Melhor Padeira do Mundo” (World Baker of the Year), a cara do Pão de Gimonde, levou a Câmara Municipal de Bragança a organizar um evento dedicado ao pão. Do programa constou uma entrevista a Elisabete Ferreira por Paulo Amado; uma palestra minha sobre “O Pão Bragançano”; uma entrevista a Amândio Pimenta “MOF Ambassadeur du Pain” por André Magalhães, e um debate “Pensar o Pão em Portugal” com Olga Cavaleiro (investigadora), Luis Afonso (da Centenária Moagem do Loreto, Bragança), Lídia Brás (do restaurante Stramuntana, Vila Nova de Gaia) e coordenado por Catarina Moura. Para satisfação de todos havia diferentes variedades de pão para prova.

 

 

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Prato com butelo, outras carnes e casulas

 

Perguntam-me muitas vezes como confecionar o Butelo e as Casulas. Nada mais simples! O butelo coze-se em água abundante. Há pessoas que lhes colocam na água umas folhas de hortelã ou outras ervas a gosto. Depois de cozido, provar a água, e desmanchar o butelo com as mãos à feição dos ossos que vão surgindo. Não utilizar facas. Para as casulas devem ser deixadas em água, de véspera. Cozem em água na qual se colocam também chouriços, de ossos, chouriças de carne, e outros enchidos de carne e nunca alheiras (pergunta que me fizeram recentemente). Provar a água que pode também levar salsa ou hortelã. Em travessa funda colocam-se os pedaços de butelo, colocam-se rodelas dos enchidos, as casulas cozidas e escorridas e também batatas cozidas. Muitas vezes coze-se também pés de porco, orelhas, focinho e rabo que se coloca tudo na mesma travessa. Deve regar-se tudo, ou cada um no seu prato, com azeite virgem.

Bom Apetite!

© Virgílio Nogueiro Gomes