A aguardente na doçaria portuguesa
Pode parecer estranho a entrada deste ingrediente, a aguardente, na nossa doçaria. Estudei cento e noventa e quatro receitas de um grupo selecionado de livros que apresento no final desta crónica. E porquê a aguardente? Num estudo mais alargado para entender melhor a entrada de gorduras na doçaria portuguesa, banha de porco e azeite, percebi que em muita dessa doçaria entravam também a aguardente e o vinho do Porto. Adicionei, então, estes dois produtos para o estudo ficar mais completo e, especialmente, descobrir as possíveis razões da sua utilização.
Dormidos
Antigamente era fácil ver as doceiras que vendiam os seus doces nas feiras, festas e ou romarias. Nos seus cestos de verga forrados com toalhas de linho bordadas, e que também cobriam os doces. Hoje vemos os doces, algumas vezes embrulhados em papel transparente e com prazo de validade. Lá se vai parte da poesia!
A variedade de doçaria em Portugal é surpreendente. Neste território, a que agora chamamos Portugal, já havia uma predileção especial pelas coisas doces, capricho satisfeito com o mel desde sempre produzido. Herdámos pouco receituário com mel, mas podemos estudar a sua importância pelo estudo de tratados dos árabes, infelizmente apelidados de infiéis, que representam a importância do mel. Aliás quando viajamos ainda hoje pelo Magrebe podemos apreciar a importância que o mel ainda representa naquelas paragens. Sabemos, a partir de Estrabão, que há dois mil anos já se exportava mel desta região.
Económicos
A doçaria poderá ter nascido pelo enriquecimento de massa de pão. A junção de ovos e possivelmente mel, e depois açúcar, criou uma rica doçaria que chamamos popular ou de romaria. Cada região desenvolveu o seu próprio receituário. Muito deste receituário está em vias de extinção e parece-me que muitos destes doces poderiam servir para o início de uma montagem de sobremesas. Raramente estes doces são muito doces, o que ajuda à sua divulgação numa época em que se estabelecem regimes alimentares diversos.
Por há uma certa tendência para não valorização do doçaria popular ou de romaria. Esta doçaria é, possivelmente, a mais confecionada em Portugal e deveria entrar mais em composições de sobremesas de restaurantes. E com alguns bastaria um pequeno acréscimo para aumentar o número de texturas, tão propagadas, e que poderão resultar em soluções fantásticas. E se estudarmos a instalação destas tradições iremos encontrar mais poesia do que noutras doçarias.
Comecemos por localizar as regionalmente as receitas estudadas: 51 nas Beiras Interiores, 43 no Alentejo, 22 na Estremadura e Ribatejo, 21 em Trás-os-Montes, 17 nos Açores, 16 no Algarve, 7 na Madeira e 5 Entre Douro e Minho. Ainda outra contagem revela que das 194 receitas estudadas têm nos seu ingredientes: 35 banha de porco e 82 azeite; 77 receitas não dispõem destas gorduras. Em muitas receitas que usam aguardente, quem as confeciona revelaram-me, maioritariamente, que a razão ou função da aguardente é eliminar o eventual gosto que as gorduras deixariam pelo seu estado de conservação e em especial pelo possível gosto a ranço. Boa solução. Atualmente este produtos conservam-se em perfeito estado sem terem as suas qualidades alteradas. Felizmente continuam, as doceiras, com o uso da aguardente que lhes dá um certo tempero., raramente percetível e parece não afetar a saúde.
Calço
(apesar de não constar nos livros citados, brevemente aparecerá em livro)
Mas se a função especial seria a de eliminar gosto de defeito da banha ou do azeite, por que razão temos 77 receitas com aguardente? Conversei com algumas doceiras e foi quase igual a resposta de todas: “dá um gostinho”!
Vejamos doces que levam aguardente: “Argolas de Monforte”, “Beijinhos de Tavira”, “Beilhós de Abóbora Amarela”, “Beilhoses da Chamusca”, “Biscoitos de Aguardente da Terceira e Biscoitos de Aguardente de Santa Maria”, ambos dos Açores, “Bolinhos de Amêndoa de Albufeira”, “Bolo Casa de Castro”, “Bolo de Canela de Pedrogão”, “Bolo de Figo”, “Bolo de Figos Secos de Torres Novas”, “Bolo Escuro de Castro de Aire”, “Bolo Gilda da Graciosa”, “Bolo Mulato de Ermesinde”, vários “Bolo-Rei”, “Bolos de Cabeça de Tomar”, “Bolos Doces da Lousã”, “Bolo dos Passos”, “Bolos-Podres de Vila Real”, “Borrachões”, “Broas da Madeira”, “Broas de Santo Aleixo”, “Cacetes de Paços de Arcos”, “Canudos de Ceifeira de Estremoz”, vários “Coscoreis” e “Coscorões”, “Doce de Figo”, “Donas Amélias da Graciosa”, vários “Dormidos”, vários “Económicos”, muitas “Filhós” e "Filhoses", “Fitas de Querença”, “Fogaças de Palmela”, vários “Folares”, várias “Malassadas”, “Mexidos ou Formigos de Guimarães”, “Minutos”, “Nogados”, várias de “Órgãos”, várias “Palmiras”, “Pão-de-ló de Porto Santo”, “Queijos de Figo”, “Rosquilhas de Aguardente da Graciosa”, “Rosquilhas do Pico” e “Velhoses de Tomar”. Muito por onde escolher!
Por esta listagem repara-se que raramente o ingrediente “aguardente” aparece na sua denominação, talvez pelo risco de afugentar a clientela.
Rosquilhas
© Virgílio Nogueiro Gomes
Eis os livros e autores que consultei para este texto: Entre Coentros e Poejos, António Nobre, Caminho das Palavras, 2010; O Azeite e as Azeitonas, António Manuel Monteiro, João Azevedo Editor, 2007; Doçaria Conventual, Câmara Municipal de Odivelas, 2001; Sabores da Costa Azul, Celeste Cavaleiro, Estuário Publicações, 2006; Doçaria Tradicional do Concelho da Chamusca, Câmara Municipal da Chamusca, 1982;Natal à Portuguesa, Edite Vieira Phillips, Colares Editora, 1994; A Nossa mesa: receituário gastronómico da Figueira da Foz, Margarida Perrolas e Guida Cândido, C M da Figueira da Foz, 2015; À Moda do Porto, Hélio Loureiro, Edições Almedina, 20116; Doces Tradicionais do Ribatejo, Instituto do Emprego e Formação profissional, 1997; Trás-os-Montes à Mesa, Isabel Gomes Mota, Quetzal, 1995; Doçaria de Guimarães, sua história, Isabel Maria Fernandes, Despertar Memórias, 2012; Cozinha do Mundo Português, Maria Adelina Monteiro Grilo e Margarida Futscher Pereira, Livraria Tavares Martins, 1962; Cozinha do Alentejo na minha casa, Maria Antónia Goes, edição da Autora, 2014; Tesouros da Cozinha Portuguesa, Maria Emília Cancella de Abreu, Seleção do Reader’s Digest, 1984; Coisas de Açúcar, Manuel Luis Goucha, Texto Editora, 1987; Cozinha Tradicional Portuguesa, Maria de Lourdes Modesto, Verbo, 1982; Festas e Comeres do Povo Português, Maria de Lourdes Modesto e Afonso Praça, Verbo, 1999; Cozinha regional portuguesa, Maria Odete Cortes Valente, Livraria Almedina, 1973; e Eu … A culinária tradicional de Alcochete, Odília Costa Pina, C M de Alcochete, 1992.