Doces com carnes!
Parece estranho, mas existem, de facto, doces nos quais se incorporam carnes ou seus derivados. São muitas as receitas que incluem banha de porco na sua preparação, desde a doçaria popular, ou de romaria, até à doçaria mais rica. As gorduras, animais e vegetais sempre fizeram parte dos ingredientes para confecionar doces e aqui também se pode incluir um elemento de origem bovina que é a manteiga e dos vegetais, a mais comum é o azeite. Há receitas com três tipos de carne: coelho, galinha e porco. Estas carnes eram cozidas e pisadas em almofariz, até ficarem em papa, para adicionar ao açúcar e gemas dando-lhes uma consistência mais delicada do que se adicionasse farinha. As receitas estão identificadas e não se sabe, com rigor, desde quando esta prática aconteceria. As receitas estão associadas à doçaria conventual e transmitidas por tradição oral popular.
Uma das receitas mais conhecidas é a de “Manjar branco” que utiliza peito de galinha consta do caderno de receitas da Infanta D. Maria (1538-1577) e apenas publicada supostamente pela primeira vez no livro Um Tratado de Cozinha Pôrtuguesa do Século XV, edição preparada pelo Professor Antônio Gomes Filho, publicada pelo Instituto Nacional do Livro do Ministério da Educação e Cultura, Brasil, em 1963. Depois em O «Livro de Cozinha» da Infanta D. Maria de Portugal com leitura de Giacinto Manuppella e Salvador Dias Arnaut, pela Universidade de Coimbra em 1967. Posteriormente foi publicada no livro Arte Nova e Curiosa para Conserveiros, Confeiteiros e Copeiros … de autor anónimo e publicado em 1788.
Eis a receita publicada em 1963 e assumida como de leitura moderna:
Receita de “Manjar Branco”
Devo lembrar que todas as primeiras receitas referiam a especificidade de a galinha ser “preta”, alusão omitida nesta leitura. No Brasil “Manjar branco” é quase um doce nacional sendo que a primeira receita publicada naquele país, Cozinheiro Imperial, 1840, não é uma continuação do nosso manjar, e não tem galinha. A modo de terminar a receita pode variar, sendo em montículos individuais parecendo um cone pou em tabuleiro com vários montículos que pode ser queimados com uma pá incandescente.
Manjar Branco de Portalegre
Muito embora a carne mais usada, ou os seus derivados, seja a de porco irei apenas utilizar uma receita de “Morcelas doces de Tarouca”. A lista de doces com derivados de porco: sangue, banha e toucinho é muito extensa e não é o propósito desta crónica. As morcelas existem no receituário de Trás-os-Montes e Minho e fazem parte da economia doméstica com utilização de sangue e mel, e por vezes até enriquecidas com amêndoas. A delicadeza da receita oriunda no Mosteiro de Tarouca é o lombo de porco que coze bem em água temperada com pimenta e cravinho. Depois pisa-se ou desfaz-se com pão até obter uma massa uniforme que se junta a uma calda de açúcar em ponto de pérola. Parece que também, em conventos de Murça e Portalegre, se fariam morcelas idênticas. As morcelas de Tarouca não levariam sangue.
Morcelas de Arouca, da Casa dos Doces Conventuais de Arouca
A terceira sugestão de carne em doce é a de coelho. A carne de coelho sempre foi utilizado para dietas alimentares e em especial para combater o colesterol. A receita de “Manjar das Chagas” parece ter origem no Convento das Chagas de Vila Viçosa, local onde ainda se prepara e servida como sobremesa. Para a sua confeção coze-se muito bem a carne branca de coelho e desfaz-se, ou pisa-se em almofariz, até obter uma pasta. Depois junta-se a esta pasta amêndoas raladas até ficar uma pasta homogénea. Prepara-se uma calda de açúcar até ponto de cabelo e junta-se a massa de coelho e, ainda ao lume mexe bem até estar tudo bem envolvido. Retira-se o lume e juntam-se gemas de ovo, cravinho e estrela de anis e pau de canela e casca de limão. Volta tudo ao lume até as gemas estarem cozidas. Deixa-se arrefecer e coloca-se em travessa ou taça de ir à mesa. Pode ser polvilhado com canela e ou com amêndoa cortada.
Manjar das Chagas, foto de Adriana Freire
Temos mais receitas e outras carnes. Vou citar um exemplo raro, “Manjar de Língua” atribuído a Arouca e que é confecionado com língua de bovino bem cozida e que não tem sido fácil encontrar confecionado. Ainda uma especialidade agridoce que são as “Tortas de S. Martinho” ou “Tortas de Penafiel” que são pasteis de carne bovina em massa folhada e depois polvilhadas com açúcar e canela. Podem ser degustadas em várias pastelarias de Penafiel.
© Virgílio Nogueiro Gomes