Salmonetes e os Salmonetes à Setubalense

 

 

salmonet1

O Salmonete é descrito em As espécies mais populares do mar de Portugal, editado em 2015 pela Ciência Viva – Agência Nacional para a Cultura Científica e Tecnológica, da seguinte forma: “O Salmonete é um peixe de pequenas dimensões, avermelhado e com três bandas amarelas longitudinais. É encontrado no Atlântico Nordeste e Mar Mediterrâneo, onde habita o fundo do mar até os 100 m. Forma cardumes e alimenta-se de crustáceos, pequenos moluscos e peixes. Reproduz-se do final do inverno até ao início de verão, permanecendo os juvenis na coluna de água, apenas indo para o fundo quando atingem a idade adulta. É pescado com arrasto e redes de emalhar.”

Como curiosidade ainda no mesmo documento, escreve: “Os dois barbilhões debaixo do queixo do salmonete são órgãos sensoriais que usa para tatear o fundo e encontrar comida.”

No livro O Pescado na Alimentação Portuguesa, editado em 1997 pelo Instituto Nacional de Formação Turística é apresentado o salmonete em duas categorias: Salmonete-Legítimo (Mullus surmuletus), também conhecido como salmonete-da-rocha, salmonete-da-pedra, salmarino e salmonete-vermelho; e Salmonete-do-Lodo (Mullus barbatus), também conhecido por salmonejo, salmonete-da-vasa e salmarino. O primeiro é dado como o legítimo, e que habita nos fundos de areia entre rochas, é abundante nas águas do sul da Península Ibérica, Madeira, Açores e Norte de África. “Comercializa-se fresco e consome -se sobretudo grelhado. O fígado é utilizado para fazer molhos, nalguns pratos típicos (Setúbal).” Quanto ao segundo é tido como menos nobre, pois é “capturado na pesca costeira em fundos arenosos e lodos da costa portuguesa e norte africana.” Os pescadores conhecem bem as diferenças!

Vejamos como encontramos referências histórias, e por ordem cronológica, sobre o consumo de salmonetes.

 

 

 

salmonet2

No livro A Alimentação em Portugal na Idade Média, de Maria José Azevedo Santos, Inatel, Coimbra, 1997,na página 81 pode ler-se: “…Quanto ao peixe mais consumido na casa real, durante os meses de Março-Julho de 1474, podemos dizer que foi a azevia (2356 unidades) a seguir a ostras, de que se compraram 783, salmonetes e, por fim, linguadas e linguados, peixes que mostraram, comparados com os anteriores, ser os mais caros não só pela delicadeza da sua carne, ainda hoje apanágio da alta cozinha, mas também pela escassez da oferta. Os pobres e as populações rurais comeriam, pelo contrário, sobretudo, peixotas e sardinhas.”

No estudo A Sociedade Medieval Portuguesa de A. H. Oliveira Marques, Livraria Sá da Costa, Lisboa 1987, cita “salmonete” na lista de peixes da época medieval.

Na obra de Gil Vicente (1465-1536), no Auto Nau D’Amores (1527), no capítulo IV, tem uma citação de “salmonete”.

Na crónica da Jornada ao Alentejo e Algarve, de D. Sebastião, 2 de janeiro de 1573 a 14 de fevereiro de 1573, escrita por João Cascão e transcrita por Francisco de Sales Loureiro, Livros Horizonte, 1984, pode ler-se que no dia 3 de janeiro que “os pescadores lhe ofereceram uma grande quantidade de salmonetes, e de outro pescado, e marisco.”

No dia 28 de janeiro: “…depois de bem fartos de vinhos que iam tomar à bica e dos muitos e diversos pescados que andavam a rodo, jogavam com eles as laranjadas. Houve

muitas empadas de salmonetes e de lampreias; não faltou solho; não trato de sável, nem da diversidade de outros muitos pescados…”

No livro Arte de Cozinha, de Domingos Rodrigues, 1ª edição 1680, Lisboa, o primeiro livro de cozinha em Portugal apresenta as seguintes duas receitas de salmonetes:

Salmonetes de empada” e “Salmonetes em pratinho”.

Curioso é notar que não apresenta nenhuma receita de preparação do peixe inteiro como hoje habitualmente encontramos e duas receitas com partes do peixe ou o peixe cortado.

Cem anos depois, o livro Cozinheiro Moderno ou Nova Arte de Cozinha, de Lucas Rigaud, 1ª edição 1780, Lisboa, é o segundo livro de cozinha em Portugal. Não apresenta nenhuma receita de salmonetes.

 

 

 

salmonet3

 

A pesar deste livro O Cozinheiro Imperial, RCM, 1840, Rio de Janeiro, não ser uma edição portuguesa, o livro reflete muito do que seria a prática culinária portuguesa naquele tempo. Apresenta um texto e uma receita: “O salmonete é peixe do mar e muito estimado, porém é melhor de inverno que de verão; e os pescados entre rochedos são melhores que os que se pescão nas embocaduras dos rios, porque estes tomão o gosto de marezia e sabem a lôdo.” A receita é a de “Salmonetes assados”, que se “… servem-se com um molho feito dos seus próprios fígados, azeite bom, sal, pimenta, e sumo de limão ou de laranja azeda.”

E aqui encontramos o elemento que terá dado a denominação à setubalense ou à moda de Setúbal, com o molho de manteiga e limão e os fígados dos salmonetes.

 

 

salmonet5

(Salmonetes à Setubalense)

No livro Arte do Cozinheiro e do Copeiro, do Visconde de Vilarinho de S. Romão, 1841, Lisboa, e ser na maioria a tradução de receitas do livro francês La Maison de Campagne de Madame Aglae Adanson, publicado em 1822, apresenta três receitas:

“Methodo de cozer os peixes tenros, e delicados à Holandeza” inclui o “Salmonete” no conjunto dos peixes constituído também por: “Rodovalho, Peixe-galo, Choupa, Capatão, Safia, Lingoado, Serrajão, Charéos, Peixe-rei, Lissa, Voador e Peixe-aranha.”

A receita mais curiosa é dos “Salmonetes assados,” que recomenda “… e guardai-lhes os fígados; … Assai os fígados no espeto, e depois desfazei-os num prato com os dentes de um garfo; ajuntai-lhes azeite bom, pimenta e çumo de limão… (Aos fígados é preciso tirar o fel com muito esmero)”

Ainda a receita de “Salmonetes marinados” que, depois de se lhes tirar a cabeça, ficarão a “…marinar durante duas horas com manteiga derretida, sal, pimenta, salsa e cebolinhas picadas.”

Invulgar é o livro Formulario para Cozinha e Cópa, coordenado por Hum Curioso da Província do Minho, 1860, Porto, e que nos propõe uma receita de “Salmonetes assados”.

No famoso livro O Cozinheiro dos Cozinheiros, de Paulo Plantier, 1870, Lisboa

Apresenta cinco receitas: “Salmonetes à la maître d’hôtel”, “Salmonetes au gratin”, “Salmonetes com alcaparras”, “Salmonetes com azeite” e “Salmonetes fritos”. Num texto genérico sobre Salmonete “escreve que a … “sua cor é ruiva misturada com pardo; o seu fígado é muito agradável ao paladar, e extremamente grande em proporção do resto do corpo.” Apesar de não referir que o fígado entraria na confeção de um molho, fica-nos no sentido de que o fígado seria bom para comer.

Outro livro muito importante do século XIX, Arte de Cosinha, de João da Matta, 1876, Lisboa apenas sugere duas receitas: “Salmonetes em papelotes” e “Salmonetes à la regence”, receitas do património francês.

Na 6ª edição, 1924, são acrescentadas:

“Salmonetes à maître d’hôtel” e “Salmonetes recheiados” (receita difícil de entender, mas escreve: “Depois de escamados os salmonetes, tira-se-lhe as guelras, mas não as tripas, que é o melhor do salmonete.”)

No invulgar livro Novíssima Arte de Cozinha, escrito por Um Mestre de Cozinha, 1889, Lisboa vamos encontrar duas receitas:

Salmonetes na grelha” e “Salmonetes com molho de alcaparras”.

 

 

salmonet6

(Salmonete grelhado com os fígados no interior)

Muito importante será o livro Tratado Completo de Cozinha e Copa, de Carlos Bento da Maia, 1904, Lisboa. Apresenta um texto e seis receitas. No texto pode ler-se: “O salmonete, representado na nossa gravura, é um peixe geralmente de pequenas dimensões, de cor avermelhada e que abunda muito nalgumas regiões das costas de Portugal. No mercado de Setúbal é muito vulgar e nem por isso menos apreciado.”

Receitas: “Salmonete da fundura assado”; “Salmonete da fundura assado com vinho fino”; “Salmonete da fundura cozido”; “Salmonete da fundura em filetes”; “Salmonetes grelhados com manteiga derretida” e “Salmonetes grelhados à setubalense”, (possivelmente a primeira receita publicada com esta denominação, e com o molho dos fígados).

No invulgar livro Culinária, de Olleboma, 1928, Lisboa

Texto sobre salmonetes: “É um peixe muito saboroso, medindo de 15 a 25 centímetros de comprido… Prepara-se geralmente grelhado… Podem também ser fritos em manteiga, juntando-se no fim à manteiga os fígados dos peixes esmagados e uma colher, das de sobremesa, de sumo de limão por peixe.” Depois apresenta seis receitas de salmonetes: “Salmonete de fundura à portuguesa”, “Salmonete de fundura assado”, “Salmonete de fundura cozido”, “Salmonete de fundura estufado”, Salmonete frito com molho dos fígados do mesmo”, “Salmonete grelhado” e “Salmonetes fritos com um molho de tomates”.

Importante para a gastronomia português é o livro A Cozinha Ideal, de Manuel Ferreira, 1933, Porto com um texto sobre salmonetes: “O salmonete é um peixe de cor rosada e pesca-se, em abundância, sobretudo em Setúbal. É saboroso enquanto é pequeno, razão da nossa preferência, não se prestando para cozer…”

Apresenta vinte receitas: “Salmonetes à Alentejana”, “Salmonetes à Bretã”, “Salmonetes à Bustorff”, “Salmonetes à Costa do Sol”, “Salmonetes à Fausto de Figueiredo”, “Salmonetes grelhados”, “Salmonetes grelhados à Barão”, “Salmonetes grelhados à Francillon”, “Salmonetes grelhados à Moda de Setúbal” (com molho de manteiga com fígados), “Salmonetes grelhados à Nantesa”, “Salmonetes grelhados em Papelote”, “Salmonetes à Lisbonense”, “Salmonetes à Marselhesa”, “Salmonetes à Moda de Sesimbra”, “Salmonetes à Moleira”, “Salmonetes à Oriental”, “Salmonetes à Portuguesa”, “Salmonetes recheados à Adamastor”, “Salmonete recheado à Económica” e “Salmonetes à “Terra Nostra”.

Este livro é tão importante, não só porque foi escrito por um grande chefe de cozinha da época, mas porque o seu livro foi o manual profissional adotado para os exames de classificação de título de profissionais de cozinha. O livro tem nas primeiras páginas a seguinte apresentação: “Único tratado de cozinha aprovado com GUIA OFICIAL pelos Sindicatos Nacionais da Indústria Hoteleira e Similares do País”. Foi também reconhecido pela associações patronais desta atividade.

A primeira grande obra de elogio da gastronomia portuguesa é o livro Culinária Portuguesa, de Olleboma, 1936, Lisboa, que apresenta duas receitas:

“Salmonetes à Moda de Setúbal” (grelhados e com molhos com fígados) e “Salmonetes à Moda de Lisboa”. É também este autor que publica a mais conhecida tabela de peixes com melhor sabor por meses. Assim, recomenda o consumo dos salmonetes nos meses de dezembro, janeiro e fevereiro.

A partir desta data a grande maioria dos livros de cozinha portuguesa apresentam a receita de Salmonetes à Setubalense ou Salmonetes à Moda de Setúbal. Nesta lista se incluem os inventários em livros como Cozinha do Mundo Português de Maria Adelina Monteiro Grilo e Margarida Futsher Pereira, Livraria Tavares Martins, 1962; Cozinha Regional Portuguesa de Maria Odete Cortes Valente, Livraria Almedina, 1973; Cozinha Tradicional Portuguesa de Maria de Lourdes Modesto, Verbo Editora, 1982 e Tesouros da Cozinha Tradicional Portuguesa de Maria Emília Cancella de Abreu, Seleções do Reader’s Digest, 1984.

Parece-me que poderemos afirmar que os Salmonetes à Setubalense ou os Salmonetes à Moda de Setúbal são uma tradição que se irá manter. A sua origem poderá fixada no receituário do molho com os fígados dos salmonetes no século XIX, mas só no século XX a denominação se instalou, até porque os melhores salmonetes são os de Setúbal. A primeira vez que comi Salmonetes à Setubalense parece-me ter sido, se bem me lembro no saudodo Restaurante Naval Setubalense em Setúbal, nos anos 70. Segundo Rui Canas Gaspar: "..., bem como o salmonete à setubalense, uma inovação nascida ali...", conforme escreveu no blogue "troineiro" em 30 de stembro de 2015. O restaurante foi fundado pelo Senhor Rocha e seus filhos deram continuidade, em especial Laureano Rocha.

Por vezes peço os salmonetes apenas grelhados, sem serem esventrados, e como religiosamente os fígados.

No entanto, e em pelas visitas regulares aos mercados, julgo ser oportuno que se criasse um “período de defeso” para garantir um bom desenvolvimento da espécie.

© Virgílio Nogueiro Gomes

 

salmonet4