Este termo poderia parecer um pleonasmo. Açorda é Alentejo. Açorda Alentejana é uma das sopas mais fascinantes da cozinha portuguesa. Que pode ser um prato completo. E fascinante pela sua simplicidade e que lhe permite introduzir variantes capazes de produzir uma “rota” de “açordas alentejanas”. Depois há as outras “açordas”. Essas outras “açordas”, no Alentejo, chamam-se migas. E ainda as “açordas” da costa da Estremadura, com peixes e marisco, mas que são um prato.
Basicamente a “Açorda Alentejana”, é um caldo que foi temperado com um piso de alho, sal e coentros. Depois tem uma componente fundamental que é o pão. Depois há quem guarneça de bacalhau. Depois há quem lhe junte também poejos. Depois, depois… E assim começa um romance à volta da “Açorda”.
Para Maria de Lourdes Modesto, verdadeira autoridade, e alentejana de todos os costados, para a “açorda alentejana”, parte-se do tal piso feito em almofariz com coentros ou poejos, ou ambos misturados, alho e sal grosso. O piso é colocado na terrina de ir à mesa, depois regado com azeite e escalda-se com água a ferver, na qual se escalfaram ovos, e abundante. Mexe-se o caldo com um pouco de pão e prova-se. Aprovado o caldo adiciona-se-lhe o pão às fatias ou aos cubos cortados com faca ou à mão. Os ovos escalfados podem ser colocados no final na terrina ou individualmente no prato de cada um. Ora, mesmo nesta definição aparecem desde já duas formas de cortar ou pão, às fatias ou aos cubos, e que poderá ser cortado com faca ou à mão. Já a partir daqui começam as teorias, muitas delas esquecendo o fundamental, que é a forma como cada um foi habituado ou como educou o gosto. Não vou aqui delongar-me sobre a teoria do corte do pão. Cada um que o faça conforme lhe aprouver. Mas as variantes não se ficam por aqui. O caldo pode ser de, nele ter cozido, bacalhau ou pescada, e postas desses peixes adicionados à “açorda”.
Há, no entanto, autores que consideram que a “açorda” primeira, terá sido feita com poejos, e só mais tarde com coentros. Afirmam também que o pão deve ser desmanchado à mão, e não cortado com faca para o azeite e sabores do piso se entranharem mais no pão.
Na sequência de concursos organizados pela Confraria Gastronómica do Alentejo, de Évora, foi publicado foi publicado em 2011 um livro com “as melhores receitas” no qual há, naturalmente, um capítulo dedicado às “Açordas”. Estas surgem com duas versões da “açorda” tradicional, inclui bacalhau, e a grande é que uma é feita com coentros e outra com coentros e poejos e a receita remete-nos para as descrições anteriores mas sempre adicionadas de pimentos verdes. Depois aparece-nos a de Serpa que tem linguiça, toucinho e tomate além dos ingredientes tradicionais. Para a Açorda de Peixe do Rio, utilizam-se bogas, poejos em vez de coentros e também queijo fresco. Já na de Espinafres, além destes, também entram na “açorda” batatas, louro, pimentos vermelhos, bacalhau e queijo mole de ovelha. A apelidada de Salsa, naturalmente com salsa, colorau, farinha, louro e queijo de cabra. Para terminar com este livro temos uma Açorda de Tomate com Bacalhau e identificada com origem em Moura. Com bacalhau, tomate, batatas, colorau, louro, cebolas e hortelã da ribeira.
Em repositórios de receitas encontrei outras “açordas” com amêijoas, com pimentos, com pescada, com sável e várias com toucinho e linguiça.
Joaquim Pulga, no seu livro “Alentejanando”, define a base com coentros, alho e azeite para o piso, bacalhau, pimentos verdes, pão e ovos para escalfar. Mas alerta que se podem fazer sem ovo, sem pimentos e sem bacalhau e, compara a sua simplicidade “a uma donzela sem arrebiques.” E que também se podem fazer com poejos, hortelã da ribeira e com peixes do rio e do mar.
Para os lados de Marvão consta que também acompanhavam com azeitonas. No livro “Marvão à mesa” tal acompanhamento não aparece. A “açorda” é apresentada com a alternativa de coentros ou poejos e também o colorau que é facultativo.
Recentemente assisti à apresentação de uma “Açorda Alentejana” por Vitor Sobral, em congresso no qual era discutida a influência da cozinha francesa em Portugal. É inquestionável a importância do Vitor Sobral na nova cozinha portuguesa, na qual não criou roturas mas melhorou a sua apresentação, revisitou-a, e deu-lhe um toque para acentuar as características fundamentais da receita, valorizando os sabores. Foi uma boa aposta, apresentando um prato de sabores centenários e com uma apresentação de seriedade e obrigando todos os sentidos a atuar. E garante que é uma “receita sofisticada sem deixar de ser portuguesa”. Mais uma prova de como a cozinha portuguesa está com a dinâmica que se espera nas artes culinárias. Para completar acrescentou bagos de uvas.
Já pensaram em acompanhar uma “Açorda Alentejana” com vinho? Um desafio para todos.
Bom Apetite!
© Virgílio Nogueiro Gomes
Foto © Adriana Freire