Marguerite Duras à Mesa
Numa parceria entre a Cinemateca Portuguesa e a Associação Portuguesa de Escritores aconteceu recentemente um ciclo de cinema “Escritores-Realizadores”. Tive a oportunidade, e a sorte, de assistir à exibição do filme Nathalie Granger realizado por Marguerite Duras (1914-1996) com Lucia Bosè, Jeanne Moreau, Gérard Depardieu, Luce Garcia-Ville. A maioria das filmagens decorreram na sua casa de campo em Neauphle-le-Château, em França. Foi apresentado por José Manuel Mendes, Presidente da Direção da APE. Este filme foi estreado em Portugal em Agosto de 1972 no Cinema Mundial em Lisboa, e são conhecidos dezanove filmes por ela realizados. O organizador deste ciclo foi Luis Machado, escritor, que já nos habituou a outros eventos culturais nos quais a alimentação, ou o prazer da mesa, está incluída. Também desta vez tivemos após sessão cinematográfica, um jantar debate sobre a obras de Duras, e também sobre a literatura e a gastronomia no cinema, cuja ementa constou de: Chuva de Verão – Sopa de Alho Francês; Moderato Cantabile – Cogumelos Gratinados com Queijo e Espinafres; Savannah Bay – Almondegas com Puré e Legumes Braseados; e Saigon Cake – Bolo de Chocolate com Gelado de Baunilha. Em itálico o título dos livros que deram origem aos respetivos pratos. Coube-me a incumbência de comentar os pratos que foram servidos durante a refeição. O jantar decorreu no restaurante 39 Degraus, nas instalações da Cinemateca à rua Barata Salgueiro 39, 1269-059 Lisboa.
Apesar de não ter lido muita da obra de Duras, mas não poderei esquecer, nunca, a leitura de Moderato Cantabile, que li nos anos 70. Recentemente foi publicado o livro La Cuisine de Marguerite, com textos e entrevistas por Michèle Kastner, editado por Benoît Jacob, 2021, onde encontramos a reprodução de algumas receitas escritas ou anotadas por Marguerite Duras. É uma excelente compilação com reprodução dos originais de muitas receitas. Entre elas encontrei “Morue à la Mode de Maria”. Ora, no filme Nathalie Granger há um episódio da escritora que telefona para a “Perfecture” para saber informações sobre o paradeiro de Maria, sua empregada, e é informada que foi deportada e que teria assinado o consentimento da deportação. Maria, estaria em situação não regularizada, e a escritora reclama que não deveria ser possível obrigar alguém a assinar um documento quando não sabe ler nem escrever. São bem conhecidas as opções políticas de Marguerite Duras e por isso aquele comentário. Transparece que gostaria dos serviços de Maria. A receita é de «Morue à la Mode de Maria». Pensei de imediato que a receita seria de origem portuguesa. Mas não e vejam a transcrição feita diretamente do livro citado:
« MORUE À LA MODE DE MARIA
Morue,
Huile d’olive,
Lait,
Ail, poivre.
Faire dessaler la morue. La faire pocher sans trop la faire bouillir. La faire revenir dans 1 décilitre d’huile d’olive bouillante, la travailler avec une spatule, la réduire en purée. Puis ajouter 2 décilitres d’huile d’olive, 3 cuillerées de lait bouillant (en une fois), une gousse d’ail, du poivre.
Manger avec des pommes de terre. »
Habituados que estão, a só entender receitas que têm todos os detalhes de passo a passo, isto é uma receita de quem saber fazer. Parece-me que será a fórmula mais simples da tradicional « brandade de morue » que se prepara em França, e é a receita mais simples em todo o livro. Aqui encontramos também textos extraordinários sobre: “Thit-Khô”, prato nacional da Cochinchina, atual Vietname, “A Cozedura do Arroz”, “Caril `Moda de Reunião”, “Rougail” (também receita de Reunião), “Omelete Vietnamita”, “Almondegas à Moda da Grega Melina (Mercouri)”, Almondegas Pojardsky”, “Almondegas sem Nome”, “Pequenos Pâtés de Avó de Michèle Muller”, “Cozido Anne-Marie Deruier com Rabo de Boi”, “Panelada”, “Boi Frio”, “Bortsch Bastardo à Francesa sem Natas”, “Prato de Inverno Dublin Coddle”, “Presunto com Madeira e Espinafres”, “Rins de Vitela com Madeira”, “Spare Ribs”, “Nasi-Goreng” (prato da Indonésia)”, “Frango Caseiro com Cidra”, “Paté de Fígados de Aves com Vinho Branco e Porto”, “Caponata Siciliana”, “Sopa de Alho Francês”, “Tamboril à Americana”, “Bacalhau à Moda da Maria”, “Salada Chinesa” e “Compota de Laranjas Amargas”. Este não é um livro de receitas, mas de memórias da disciplina da escrita quotidiana que, naturalmente, incluía a alimentação. Mas é um livro que abre o apetite e nos cultiva.
© Virgílio Nogueiro Gomes