Umbu e Umbuzada

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Umbus

Mais uma vez surpreendido por uma fruta que dá um doce invulgar. E tudo começou quando o meu Amigo Gilmar de Carvalho me ofereceu o livro “A cozinha dos Cabeças-Chatas” de Alberto S. Galeno e publicado em 2003 por RBS Editora. Escrito em fórmula memorialista, é verdadeiramente uma descrição de tradições culinárias do Ceará com a especificação de algumas tradições associadas aos comeres referidos. A “Umbuzada” é citada no livro como tradição do Cariri. A receita também não é rigorosa pois parece-me que objetivo não é dar receitas, mas lembrar tradições que se andam a perder. O autor é neto do escritor cearense Juvenal Galeno (1838-1931) e tenho lido muitos textos incluídos na obra “Cenas Populares”, primeira edição em 1871, que contêm muita matéria sobre tradições locais com algum destaque para a culinária, Como é bom o comer preparado por mãos queridas...

As tradições culinárias não se limitam às definições geográficas e administrativos das regiões e basta que uma ou duas famílias se desloquem e, de certo, levam alguns hábitos alimentares com elas. Muitas vezes é a forma de recordar as suas origens, ou de matarem saudades na diáspora. As tradições vão evoluindo e muitas vezes as receitas são aperfeiçoadas, melhoradas, sem lhes introduzir elementos de rotura, garantindo assim manter a essência da receita.

 

 

 

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Umbus

O umbu é um fruto oriundo da árvore umbuzeiro. Geograficamente a sua produção estará centrada em Pernambuco, Rio Grande do Norte e Ceará. Segundo Câmara Cascudo, no Dicionário do Folclore Brasileiro, 1ª edição 1954, no verbete “Umbu” remete-nos para outras designações como Ombu, Ambu e Imbu, nomes de origem tupi. É referência também em outros autores que o umbuzeiro é considerado a árvore que dá de beber, alusão aos tubérculos grandes desta planta que, nas raízes, segregam água e matam a sede aos viajantes do sertão, em tempo de seca. Esta referência é datada de 1928 na obra “O Tupi na Geografia Nacional”. Mas este fruto, extremamente sumarento, agri-doce, é estimadíssimo. Também Gilberto Freyre, no livro Açúcar, 1ª edição 1939, refere um doce de imbu, maduros que depois de cozidos em leite, depois pelados e retirado o caroço, passado por peneira, junta-se açúcar em maior peso que o dos imbus, vai ao lume e atingir o ponto de cortar, arrefece e coloca-se em latas. Euclides da Cunha (1866-1909) apelidou-a de árvore sagrada do sertão devido à importância das suas raízes.

 

 

 

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Umbu

Voltando a Câmara Cascudo refere que é popular igualmente a imbuzada, o sumo dos imbus, com açúcar e leite, com fervura até engrossar. Para reconhecer a sua ancestralidade pode ler-se no “Tratado Descriptivo do Brasil em 1587” de Gabriel Soares de Sousa sobre a sua importância como dessedentador natural, e neste caso chamado de imbu.

Há uma lenda que conta que quando Deus criou o mundo ia perguntando a cada árvore qual a função que pretendia na terra. Quando chegou ao umbuzeiro Deus terá perguntado se queria frutos doces e madeira forte. O umbuzeiro terá respondido que apenas queria folhas largas para as sesteadas dos gaúchos e uma madeira tão fraca que se quebre ao menor esforço. Deus terá dito que entendia as folhas para dar sombra, mas madeira fraca, para quê? O umbuzeiro respondeu: eu não quero que algum dia me usem para fazer a cruz do martírio de um justo. Deus concedeu o pedido e o umbuzeiro dá madeira fraca, que armazena água e que os insetos nocivos não toleram.

 

 

 

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A cozer no leite

Hoje em dia fazem-se receitas ou aproveitamento do umbu: Suco de umbu, Mousse de umbu, Doce de umbu, Umbuzada, Geleia de umbu, Vinagre de umbu e Caipirinha. Sobre o Vinagre, apenas de confeção doméstica, o Movimento Slow Food incluiu na Arca do Gosto, uma espécie de grande depósito de raridades mundiais da alimentação. Parece que é possível encontrar vinagre de umbu em zonas rurais da Bahia e de produção doméstica. Após fermentação do fruto, separa-se o caroço e depois vai a lume brando com lenha de madeiras de Caatinga e cujo arder dá uma fumaça que entra no cozimento do vinagre. O umbu é rico em cálcio, fósforo, potássio e ferro. Ainda importante a sua riqueza em vitamina C, A e ainda em vitamina B.

 

 

 

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Rapadura

(Tijolo de açúcar mascavado)

Para esta experiência culinária tive a cumplicidade gulosa de Carlos Henrique Sarmento, gerente de Alimentos e Bebidas do Hotel Praia Centro em Fortaleza. Fizemos duas versões da receita baseada nos escritos do livro “A cozinha dos Cabeças-Chatas”. Fizemos duas receitas semelhantes utilizando umbus sob formas diferentes.

Na primeira versão para um litro de leite, meio quilo de umbu e cem gramas de rapadura. Os umbus foram ao lume com o leite e quando o leite levantou fervura retirámos do lume. De seguida peneirámos os umbus e a sua polpa adicionada ao leite e rapadura voltaram ao lume para reduzir e engrossar. Obtivemos um creme que parecia tralhado. O creme não se revelou muito doce.

 

 

 

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Primeira versão

 

Na segunda versão para seis decilitros de leite, quatrocentos gramas de polpa de umbu que vão ao lume e depois adicionámos cem gramas de rapadura que engrossou o preparo e reduziu com ação do calor. O creme apresentou-se homogéneo e com mais gosto à fruta.

 

 

 

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Segunda versão

Depois de consultar várias receitas de “umbuzada” percebi que a maioria tem proporções diferentes chegando a dois quilos de umbus para meio litro de leite e, muitas vezes, açúcar a gosto.

Bom, o interessante é desafiar a utilização de produtos locais e com receituário tradicional. Aqui reforçámos com a utilização de rapadura, de melhor sabor e levando-nos a contar a história do açúcar. E, já agora, a pensar nos restaurantes, a frase que se tornou cada vez mais interessante até pelo lado comercial: um prato com história vende-se melhor!

© Virgílio Nogueiro Gomes

 

 

 

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