Possivelmente ainda se lembram de ter dado a receita deste doce, o que é uma raridade. Doçaria de fim de ano nos meus desejos, e rodeado de doces. Pois se dessa vez dei a receita, hoje vou escrever sobre algumas das suas estórias, e confirmar o meu fascínio sobre a doçaria conventual. Não há uma receita única para todo o território português encontrando-se várias trouxas-de-ovos apenas com ligeiras variantes. Uma constante é serem sempre doces, muito doces podendo, atualmente, acompanhar com alguma fruta. O seu amarelo vivo provoca imediatamente a vontade de provar e evidencia a utilização de gemas na confeção. As trouxas-de-ovos fazem parte da doçaria, conventual, rica e requintada.
O Mosteiro de Santa Clara, Vila do Conde, foi uma escola dinamizadora da doçaria local, e com trouxas-de-ovos lançou o que eu chamo de receita base, e para as outras apontarei as diferenças. A confeção da receita apenas necessita dois produtos: açúcar e ovos. E depois alguma sabedoria, gestos próprios e algum tempo. Depois por de colocar o açúcar com um pouco de água ao lume até obter um ponto de espadana muito leve, vai iniciar-se a confeção. Previamente separam-se as gemas de ovo das claras, e juntam-se apenas uma ou duas claras que se mexem bem para que fiquem ligadas. Com a ajuda de uma colher vão-se colocando as gemas no açúcar e com uma escumadeira vai-se afastando o creme até constituir uma folha. Para cozer melhor volta-se a folha de gemas e, com a escumadeira, tendo o cuidado de não rasgar, coloca-se em local para escorrer, habitualmente sobre uma rede ou uma peneira. Continua-se a mesma operação até terminar o creme de gemas. Vamos agora proceder à montagem das trouxas. Colocam-se as folhas de gemas sobre uma mesa de trabalho e, com ajuda de uma faca, vão-se cortando em quadrados, e reservam-se as aparas. Colocam-se estas aparas e sobre os quadrados que se enrolam ficando em forma de rolinho regular e com as aparas a rechear. Colocam-se em travessa e regam-se com a calda de açúcar, que sobrou, em ponto de espadana.
No Convento de S. Bento da Ave Maria do Porto, e continuando a nossa viagem. A receita apresenta apenas uma ligeira variação que tem a ver com a calda de açúcar. Aqui é em ponto de fio, e apenas leva gemas de ovo na confeção. A operação de composição final é igual à da receita anterior, e as folhas ficarão com uma textura mais densa.
Em Amarante, e seguramente com origem no Convento de S. Gonçalo, encontramos uma tradição de confeção de trouxas e é de arregalar os olhos ao ver os tabuleiros, das pastelarias, cheios desta preciosa iguaria. Das minhas memórias de infância nunca esquecerei o deslumbramento com que fiquei ao poder ver a preparação na Pastelaria Lai-Lai. Ainda hoje me lembro, e parece que sento aquele gosto, aquela cor, e o entusiasmo daquelas paragens obrigatórias que fazíamos nesta pastelaria.
O Convento de Nossa Senhora do Carmo, em Aveiro, apresenta uma receita ligeiramente diferente. Este convento parece ter sido, também, o responsável pela difusão dos famosos ovos-moles. Para as trouxas, começa-se com um ponto de açúcar em espadana alta e utilizam-se apenas gemas de ovos. A particularidade é que o recheio das trouxas é constituído, também, por fios de ovos que são ligeiramente engrossados com farinha de trigo fina e amêndoa ralada. Uma preciosidade.
A viagem chega às Caldas da Rainha, que tem uma grande tradição de confeção e consumo de trouxas-de-ovos, sem identificar a origem da receita nalgum convento local. A receita poderá ter origem do Convento de Cós, com outros méritos reconhecidos na atividade doceira, e que chegou a abastecer o Mosteiro de Alcobaça. Recordo que as primeiras habitantes deste convento eram oriunda de conventos alentejanos nos quais já se encontrava instalada um a grande e prestigiosa tradição doceira. As trouxas das Caldas são feitas a partir de um ponto de fio, com gemas misturadas com poucas claras, e as folhas ficam muito finas. Possivelmente, pelo facto de as folhas serem muito finas, usam-se duas folhas para enrolar e formar as trouxas. Estas são recheadas com as aparas das folhas de gemas, idênticas às de Vila do Conde.
Chegamos ao Alentejo que, possivelmente, terá sido a região onde nasceram as trouxas-de-ovos, e daí se propagou a mais requintada doçaria conventual. Em Vila Viçosa, no Convento da Esperança, encontramos uma receita requintada, feita a partir de um ponto de açúcar de cabelo e apenas utiliza gemas de ovo. O processo de compor as trouxas é semelhante, mas neste caso o recheio é completado por fios de ovos. No final colocam-se em prato fundo e regam-se com a calda de açúcar onde se prepararam as folhas, e os fios de ovos.
Chegados a Beja somos, ainda, surpreendidos pelo edifício onde funcionou o Convento de Nossa Senhora da Conceição, e possivelmente onde tiveram origem as trouxas-de-ovos. Este convento, um dos mais ricos de Portugal, foi conhecido como um grande centro de formação e de difusão da rica doçaria conventual. As trouxas são confecionadas a partir de um ponto de pasta, utiliza apenas gemas de ovo, e passadas por uma peneira para garantir um creme homogéneo. Preparam-se em simultâneo as folhas de gemas, e os fios de ovos. O método de enrolar estas trouxas, tem uma pequena variante que identifica a sua origem. Após colocar os fios de ovos sobre as folhas de gemas, enrolam-se, apertando uma das pontas, de modo a que adquiram uma forma de um cone. Assim temos uma aparência triangular, uma ponta mais larga que a outra. No passado colocavam-se em pé com a ponta mais larga em baixo. Eram feitas composições com as trouxas encostadas umas às outras, em forma de órgãos, e depois regavam-se com a calda de açúcar. Hoje em dia, vendem-se em caixas colocadas de forma alternada de modo que encaixem bem e depois, naturalmente, regadas. Sob a pena Castro e Brito: “As trouxas de ovos, executadas em Beja, foram sempre consideradas as melhores, em relação às que de qualquer outra procedência”, ficou este grande elogio.
Devo confessar que aprendi a comer trouxas-de-ovos a partir de Amarante pela proximidade a Bragança, depois nas Caldas da Rainha por influência militar e guardei, para final, as de Beja por arrastamento familiar. Temos a sorte de assistir à continuação da confeção deste doce e é relativamente fácil de encontrar em boas pastelarias e alguns restaurantes.
Se achar muito doces, não é por isso que deve deixar de provar as trouxas. Aproveite a partilhar com alguém e complete o prato com fruta. Este é um doce inesquecível que obriga, pelo menos, à sua prova.
Ah! E um generoso português a acompanhar.
(Composição com trouxas-de-ovos da Pastelaria ALCÔA de Alcobaça)
© Virgílio Nogueiro Gomes