"Cebolas", pintura de Silva Porto, Museu Abade de Baçal, Bragança

É inquestionável a importância da cebola na alimentação mundial e designadamente na cozinha portuguesa. Mas habituámo-nos demasiado a falar, e escrever, sobre as iguarias principais esquecendo, por vezes, os produtos que contribuem para o sucesso da confeção do peixe ou da carne. A cebola toma papel importante em muitas sopas e petiscos. Na escrita de Cláudio Fornari, a propósito de cebola, podemos ler: “Personagem indispensável na quase totalidade dos bons pratos salgados.”

Supõe-se que a cebola seja oriunda da Ásia Central, designadamente Irão e Afeganistão, mas a expansão processa-se em direção à Rússia e China através da Índia. Sabe-se ainda que já é cultivada há mais de cinco mil anos. Há, no entanto, muitas referências escritas no Egito do tempo da construção das pirâmides, em especial da de Gizé. A cebola já constava das placas cerâmicas da Mesopotâmia, registo das primeiras receitas escritas, mil e seiscentos anos A C. Depois, na época clássica de Roma há também vários registos que nos fazem concluir pela grande importância que a cebola representava para a alimentação da época. Aliás, a cebola, entra em várias receitas do famoso livro de receitas de Apício.

Como não se sabia com rigor o aparecimento de alguns alimentos, era hábito escrever lendas criativas. Para a cebola, a mais conhecida, é que tenha nascido a partir da marca, no solo, do pé esquerdo de Satanás aquando da sua expulsão do Paraíso…! Desde tempos idos é atribuída à cebola uma significação de rusticidade, ou de remorsos do pecado, e possivelmente esta última associada ao facto de ser fácil lacrimejar quando se corta, e o ato de chorar significar o arrependimento pelo pecado. Mais longe vai Filippo Picinelli, no seu livro Mundus Symbolicus, que considera a cebola como um emblema do feminino obscuro, e um símbolo do pecado. Apresenta a cebola, ainda, como um emblema do desejo que incita à satisfação com o mal dos outros. A cebola é um bolbo constituído por diversas camadas e é também assumida como o símbolo da falsidade…!

A sua representação nas artes pictóricas é muito antiga. Dos frescos egípcios e romanos para o grande Giuseppe Arcimboldo, no quadro Jardineiro, 1590, as bochechas deste são representadas por cebolas. Este quadro pode ser visto no Museo Cívico de Crèmone em Itália. Também no Museu THyssen-Bornemisza de Madrid se pode apreciar uma Natureza Morta de Chardin, 1731, tendo as cebolas um papel de destaque. Vincent van Gogh pintou uma Natureza Morta com Prato de Cebolas, 1889, que está patente no Museu Kroller-Muller na Holanda. Por cá basta ir até Bragança, ao Museu Abade de Baçal, e ver a interessante pintura “Cebolas” de Silva Porto que coloquei no topo deste texto.

Já anteriormente à fundação da nacionalidade portuguesa, a cebola marcava presença forte na Península Ibérica. Vários registos no livro de Ibn Razin al-Tugubi, 1227-1293, e depois também surge na obra de Gil Vicente, pela boca de Marta Gil, da Barca do Purgatório, ao descrever os produtos da natureza e lá veem as cebolas. Depois encontramos cebolas no caderno de receitas da Infanta D. Maria. Das vinte e nove receitas salgadas, em oito entram cebolas. Podemos considerar que a cebola sempre foi um produto de base da cozinha portuguesa. E não será necessário enumerar aqui a quantidade de receitas de cozinha regional nas quais entram as cebolas. Há, no entanto, outras referências importantes na divulgação das cebolas pelos portugueses nas famosas viagens das Descobertas e viagens seguintes para assegurar a nossa soberania. Até por uma questão preventiva da doença de escorbuto, as cebolas eram fundamentais pelas suas capacidades terapêuticas. Os portugueses levaram a cebola para África mas deparam-se com grandes quantidades na Índia onde já se cultivava em grandes quantidades. Quanto ao Brasil há dúvidas que persistem. Sheila Moura Hue cita que em 1580 os portugueses poderiam encontrar em salvador um mercado com uma grande variedade de produtos alimentares vegetais. Câmara Cascudo afirma, por outro lado que vários produtos surgem na Europa no século XVI, idos das Américas, onde inclui a cebola. Ora os portugueses sempre conheceram a cebola e ela embarcava nas naus. Depois a cebola continua a marcar presença forte em todos os livros que se publicaram em Portugal. Domingos Rodrigues, 1680, apresenta já três receitas de cebola, uma em achar e duas recheadas, para além de incluir em muitas outras. Na “Arte de Cozinha…”de Lucas Rigaud, 1780, aparecer uma receita especial de chalotas. Isto significa que já se faria distinção de outras qualidades de cebola. Alexandre Dumas, no seu Grande Dicionário de Culinária, 1870, dedica à cebola um texto extraordinário fazendo elogio à famosa receita francesa de “Sopa de Cebola”, que ainda se mantém. Também foi celebrizada na escrita do meu amigo Dias Lopes na sua crónica “O rei da sopa de cebola”, e incluída no livro “A rainha que virou pizza”. No Brasil, no livro Cozinheiro Nacional, 1874-1888, e atribuído a Paulo Salles, a cebola aparece em variadíssimas receitas, e ainda duas receitas especiais de cebolas cozidas e assadas. Ainda uma referência importante para a divulgação da cebola. Como chegou a África? Será que foi só pela mão dos portugueses, ou já lá existiria. Confirmo a importância da cebola no Egito e, seguramente, já conhecida em todo o norte de África. Na cultura afro-brasileira, vamos encontrar a cebola como elemento importante, também, para alimentação dos deuses. A cebola entra na lista de oferendas em terreiros, e faz parte da chamada comida de santo, vindo a tradição possivelmente, com os escravos que chegavam de África.

De regresso a Portugal, e ao século XX, a cebola faz parte dos elementos obrigatórios de uma despensa familiar. Na grande maioria do começo de uma receita, o refogado ou estrugido, sempre uma gordura e cebola e ou alho, fazia-se a evolução deixando a cebola escurecer pois daria outra cor ao resultado final. Hoje em dia a tendência é apenas deixar a cebola transparente e garantindo que já tenha transpirado o seu sumo. Dizem que assim a comida também se digere mais facilmente. Crua é muito utilizada em salada mas muita gente tem dificuldade em consumir neste estado. E depois há sempre reclamante do hálito…! A cebola é ainda vedeta de muitas feiras nacionais, devendo destacar a de Rio Maior, em homenagem ao meu Amigo Miguel Pires.

Apesar de haver muitas variedades de cebolas, a sua classificação é feita em função da forma e tamanho, e da sua cor. A cozinha moderna tem a vantagem de identificar os produtos que utiliza, e também para a cebola isso acontece. E muito valorizadas as compotas de cebolas, ou cozimentos em redução de um grande vinho. Também à cebola têm sido atribuídas características que sugerem o seu consumo benéfico em relação à saúde.

Na cozinha portuguesa a cebola é fundamente para algumas sopas, importantíssima para a Lagosta Suada de Peniche, para o Bacalhau à Gomes de Sá ou em Caldeiradas, nos Escabeches, em todas as Ceboladas, Assados…

Segundo Antenor Nascentes ainda se usa a expressão “chorar pelas cebolas do Egito” que significa sentir saudades do passado, e confirma a origem das cebolas do Egito.

BOM APETITE!

© Virgílio Nogueiro Gomes

Imagem de “Cebolas”, pintura de Silva Porto, foi cedida pelo © IMC/DDF-IFN da SEC

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