Qual é o português que não tem uma relação especial com o café? Cheio, curto, italiana, pingado, garoto, carioca, em chávena fria, em chávena escaldada, com açúcar, com adoçante, com pau de canela, e muitas vezes a expressão “bem tirado”, duplo e abatanado, são alguns dos exemplos de como o café é pedido. Para além da famosa “bica”. Já lá vai o tempo que se pedia ainda de saco, ou um “cimbalino”, na região do Porto. E estas expressões fazem quase sempre parte de rotinas logo pela manhã, depois das refeições, e muitas vezes a meio da manhã e da tarde. Para muitos é o estímulo para energia, quer dizer, para se manterem despertos. Para alguns é também um ajudante digestivo. Para outros é puro vício. E para outros o terror que não os deixa dormir. Os portugueses têm, de facto, uma relação afetiva com o café. E eu, como muitos, quando viajamos sinto a falta do nosso café. Recentemente esta situação está em melhoria. É o caso da Espanha e da França. Mas o caso é muito mais estranho, no Brasil, onde se sofre para encontrar um verdadeiro “expresso”como aquele a que estamos habituados. E para um português quando lhe falta o seu “cafezinho expresso”, a vida não é a mesma coisa.

Mas como se transformou este produto, discretamente surgido no século XVI, e se transformou neste hábito consumo em todo o mundo? Parece ser sido na Etiópia, região de Kaffa, que foram identificadas as primeiras tradições associadas ao café. Aqui os cafeeiros crescem de forma selvagem e os seus grãos sempre estiveram à disposição de colheitas. Deve ser esta região a única onde continuam a crescer de forma selvagem estando, em contrapartida, identificados mais de setenta países onde se planta de forma organizada em regiões intertropicais. Curiosamente é nesta região de Kaffa que se encontrou o famoso esqueleto “Lucy” com cerca de três milhões de anos. Daí qua alguns autores atribuem a esta região não só o aparecimento do café, como o consideram o berço da humanidade, estando intimamente ligados a origem do homem e do café. Acresce que na Etiópia há um paralelismo da história do café e a história das religiões. No entanto o café está presente nos grupos pagãos que praticam uma religião baseada no culto dos engenhos, ou espíritos omnipresentes que se chamam “zar”. É corrente, em África, as religiões terem início também nas forças da Natureza. “O café constitui o elemento essencial do culto dos zar”, segundo Philippe Goyvaertz que desenvolveu estudos sobre esta matéria. O café surge como um antídoto a males provocados pela possessão de um “zar” no corpo de um indivíduo. Está pois o café associado aos seus rituais. Na Etiópia, ainda hoje, o ritual do café ainda é chamado de “sacrifício do café”. Continua a haver várias lendas sobre o aparecimento do café e o que determinou o seu consumo, como os relatos de uns eremitas muçulmanos que perceberam que continuavam bem acordados quando o consumiam. Temos notícias que também o café seria considerado alimento, sendo colhidos os grãos antes de maduros e depois deixavam secar, e seriam utilizados como as leguminosas. A versão mais corrente parece estar descrita por Nairono, século XVII, que descreve que um guardador de camelos e cabras terá confessado a um monge que os animais “saltavam toda a noite”. O monge quis verificar os pastos, possível origem para o problema, e constatou que os animais ingeriam uns grãos de um arbusto que ele levou para estudar. Depois de os ferver, percebeu que tiravam o sono e propôs dar esta bebida aos outros monges para não dormirem durante as rezas da noite. Bem, parece ser esta a estória, que mais se ouve, para explicar a difusão do café. Outras lendas querem justificar o início do seu consumo e divulgação. Certo é todos os autores atribuírem à Etiópia a sua origem, sendo que antes da sua grande divulgação também foi assumido como um fármaco e, naturalmente, começou por se expandir pelos países árabes.

Apesar de haver várias variedades de café, habitualmente referem-se apenas duas: arábica (sabores mais suaves e aromáticos, e o mais apreciado), e robusta (forte e amargo e habitualmente com mais cafeína). A primeira produz-se essencialmente nas Américas, Etiópia, Quénia e Índia. A segunda produz-se na Indonésia, Vietname, Índia, Costa do Marfim, Uganda, Camarões, Madagáscar e Zaire.

É discutível a origem da distribuição do café na Europa. Se uns atribuem aos holandeses a sua promoção, vindo do extremo oriente, outros atribuem aos estados independentes que mais tarde se unificaram em Itália, pela comercialização através do Mediterrâneo. Constata-se que na França, Inglaterra, Holanda, Áustria e Veneza já havia estabelecimentos de serviço de bebidas que se chamavam “Cafés”, no século XVII, que revela bem o início do sucesso do café. Entrando, possivelmente, por Veneza o Papado terá inicialmente proibido o consumo e, mais tarde, o Papa Clemente VIII, passou a abençoá-lo. Em Lisboa surge o primeiro café, o Nicola, em 1782. Muito embora os portugueses tivessem tido conhecimento do café na Índia, está pouco esclarecida a forma como o levaram para os países da lusitanidade. Quanto a Timor parece ter sido diretamente influência dos holandeses sobre a Indonésia. Relativamente ao Brasil, consta que os portugueses terão levado o café em segredo mas esta teoria parece pouco provável. Certo é que o café se desenvolveu no Brasil através de grãos que foram trazidos de Caiena, em 1727, por Francisco de Melo Palheta, e que rapidamente se espalhou por todo o Brasil a partir do Pará e do Maranhão. Encontramos em 1732 um documento que incentiva a cultura do café, pelo Governador Joaquim Serra, sendo que nessa data há registos de envio para Portugal de grandes quantidades de café. Em 1817, a residir a Corte no Brasil, recebeu sementes oriundas de Moçambique e ajudou a intensificar a sua cultura. Há documentação, também que apresenta a chegada de cafeeiros a Cabo Verde, em 1790. Quanto a Moçambique sabemos que foram feitos estudos para localizar plantio de cafeeiros, sem grande sucesso. É natural que tenham conhecido o café através dos contactos marítimos de proximidade com a Índia. É em finais do século XVIII que João Baptista da Silva leva do Brasil cafeeiros para S. Tomé e Príncipe. Na Guiné nunca hoje produção de café apesar das tentativas recentes efetuadas. Mas é em Angola que se encontrou uma produção de café, que segundo A. Chevalier os portugueses o distribuíram ainda no século XVIII. Atualmente a produção de café encontra-se concentrada nas Américas (cerca de 75%) sendo que o Brasil é o maior produtor, na Ásia (15%) com a Indonésia como maior produtor e em África (10%) o Uganda.

Os principais consumidores per capita são países da Europa do Norte (Finlândia, Suécia, Holanda e Alemanha), e Portugal classifica-se apenas em décima quarta posição.

O café deu origem a vários textos interessantes desde o seu aparecimento. Um dos mais conhecidos é da autoria de Balsac, que publicou em 1830 uns textos sobre o que chamou “estimulantes modernos”, acusando Brillat-Savarin de não “…ter abordado exaustivamente as questões referentes a esta substância…”. Depois de fazer varais considerações sobre o efeito do café, e relatar as experiências efetuadas, a certa altura dá um conselho: “Deixar a água ferver em contacto prolongado com o café é uma autentica heresia; prepará-lo com água residual é sujeitar o estômago e os órgãos em geral a uma grande violência”. Vale a pena ler o texto completo pois muitas recomendações, ou entendimentos estão muito atuais. Noutra vertente cultural podemos ouvir a “Cantata do Café”, composta por Jean-Sebastian Bach, em 1734, um pouco para se queixar dos exageros dos cafés, estabelecimentos, que faziam cafés-concerto.

Hoje em dia tomar café comedidamente parece ajudar na qualidade alimentar, e descobriram alguns benefícios clínicos. Entre os benefícios do café, parece que terá propriedades antioxidantes, pode diminuir o risco de algumas doenças e parece melhorar a taxa de oxigenação do sangue.

O café como hoje o conhecemos, ou consumimos, é consequência de lotes organizados com grãos de várias origens, depois torrefeitos e embalados com designações a que os consumidores de habituaram, criando uma espécie de vício de qualidade. Há assim clientes fiéis dos lotes a que se habituaram.

Ao tomar café, poderá saber bem um bom licor, mas especialmente uma boa aguardente com todas as variedades que conhecemos. Também há quem goste de acompanhar com um chocolate ou uma peça de pastelaria, e porque não um Pastel de Nata?

© Virgílio Nogueiro Gomes