Caldeirada

Em continuação do texto anterior sobre Caldeiradas, no qual abordei o que se pode chamar de caldeiradas clássicas, irei desta vez escrever sobre outras caldeiradas e designadamente outras receitas que também se apelidam de caldeiradas.

Primeiro vou fazer um breve comentário sobre um tipo de receitas de caldeirada que surgiram, em registos, apenas em meados do século XX e, possivelmente, à grande expansão de estabelecimentos de alimentação, os restaurantes. Trata-se das caldeiradas ricas. À partida quereria significar a grande variedade de peixes e especialmente a utilização de peixes “nobres” como o cherne ou o robalo. Assim encontramos uma Caldeirada Rica na região da grande Lisboa que é feita colocando amêijoas no fundo do tacho, depois cebolas e tomate às rodelas. Coloca-se os peixes cortados, e que estiveram temperados com sal, cação, cherne, corvina, pata-roxa, raia, robalo, ruivo, safio e tamboril. Colocam-se também os fígados de peixes obrigatoriamente de tamboril. Depois rega-se com azeite e vinho do Porto, tempera-se com molho picante (muita vezes infusão em whisky ou gin), e coloca-se uma camada de sardinhas de forma raiada. Por fim rodelas de pimentos verdes. Tapa-se e leva-se ao lume e apenas se abana o tacho sem se mexer a caldeirada. As amêijoas garantem que os peixes não se queimam no fundo do tacho. Quando os pimentos estiverem cozidos a caldeirada está pronta. Se necessário retificar tempero com sal e molho picante. Com o caldo desta caldeirada, juntando-se cotovelinhos e fervendo, faz-se uma sopa à qual se pode juntar umas folhas de hortelã.

No Algarve temos outra Caldeirada Rica cuja grande diferença, desta, é começar com um refogado. Num tacho (preferencialmente de barro) com azeite, juntam-se rodelas de cebola e deixam-se até as cebolas ficarem transparentes. De seguida junta-se o alho picado, salsa picada e o tomate pelado e sem grainhas cortado aos cubos. Rega-se ligeiramente com vinagre. Depois de tudo bem envolvido rega-se com água e junta-se louro, sal, pimenta em grão, piripíri e rasca de noz-moscada, e deixa-se levantar fervura. Entretanto os peixes cortados, limpos e que estiveram com sal são colocados no tacho depois de passados por água para retirar o excesso de sal. Os peixes devem entrar em quantidades iguais e pondo por baixo os peixes mais difíceis de cozer. Entre cada camada de peixes devem colocar-se pimentos verdes cortados às tiras. Da lista de peixes podemos considerar besugo, cherne, corvina, garoupa, linguado, pregado, salmonete, sargo e tainha. Terminados estes peixes cobre-se a caldeirada com uma camada de sardinhas e sobre estas colocam-se uma “nozes” generosas de manteiga. Agora cobre-se com fatias de pão com a espessura de um dedo. Deixa-se a caldeirada em lume brando. Não se mexe e apenas se abana o tacho. A caldeirada está pronta quando o pão da cobertura se encontrar ensopado. Serve-se colocando um pedaço de pão em cada prato, uma sardinha, e depois uma boa colherada da caldeirada.

Neste capítulo de caldeiradas podemos ainda considerar a “Caldeira” da Madeira, mais assumida como uma sopa completa que não deixa de se assemelhar a algumas caldeiradas, mas que aqui é habitualmente apenas feita com uma variedade de peixe, carapau inteiro ou espada ou atum às postas, e começa com um refogado com azeite, cebola, tomate, pimenta e salsa, que depois de ferver a água que se lhe juntou, também se adicionam batatas. Acompanha-se com batata-doce cozida ou assada e também pão. Também é costume servir com milho cozido.

Outra caldeirada vai aparecer no “Caldo de Peixe”, nos Açores. Aqui há uma grande variante pois os peixes, em postas altas, vão cozer em água com salsa, louro, tomate e cebolas cortados aos quartos, pimenta da Jamaica, vinho branco, massa de malagueta, azeite e batatas às rodelas. Em separados cozem-se batatas inteiras, descascadas, segundo a tradição, uma por cada conviva. Faz-se um piso, em almofariz, com a salsa, os alhos, sal grosso, açafrão e uma pitada de vinagre. Depois de obter uma papa, junta-se um pouco de água e amacia-se. O ritual de serviço consiste em retirar para cada prato um pedaço de cada peixe e uma batata inteira e rega-se com o molho do piso. Ao mesmo tempo serve-se o caldo ao qual também se juntou o molho. Vai-se comendo o peixe com a batata e bebe-se o caldo. Há quem utilize outros produtos e criam variantes no tempero, com vinho, ou cominhos.

Voltando a caldeiradas continentais encontramos no Minho frequentemente “Sardinhas Frescas de Caldeirada”. Colocam-se em cru e às camadas, sardinhas sem cabeça e bem limpas, batatas às rodelas, cebolas, salsa, louro, colorau, azeite, um pouco de vinagre e sal e pimenta. Coze em lume brando sem mexer, tendo o cuidado de abanar o tacho. Em Trás-os-Montes surge umas “Migas de Caldeirada de Bacalhau”, o que faz pensar primeiro na caldeirada e depois nas migas. Devo esclarecer, uma vez mais que fui educado com um conceito autónomo para o bacalhau e o polvo. Havia os peixes, havia o bacalhau e o polvo e depois as carnes. Mas nesta receita põem-se a cozer em água abundante bacalhau demolhado, sem pele nem espinhas, e cortado em pedacinhos em simultâneo com batatas aos quadrados. Coloca-se na panela alhos e salsa em rede para poder retirar. Tempera-se com colorau e molho picante. Quando os alhos estiverem cozidos, retiram-se assim como a salsa. Cortam-se fatias de pão de centeio e pão de trigo, de véspera e colocam-se sobre o cozido e rega-se generosamente com bom azeite cru. Envolve-se tudo e embrulha-se o tacho com jornais um cobertor pequeno para a água ser toda bem absorvida. No final, antes de servir pode regar-se com um pouco mais de azeite.

Por terras ribatejanas também temos uma “Caldeirada de Bacalhau”, originária de Almeirim. Esta feita de forma ainda mais diferente. Coloca-se um tacho ao lume com bastante água. Junta-se cebola picada e deixa-se cozer. Junta-se agora cheiro negro, de sangue, e chouriço de carne ou linguiça, e couve portuguesa esfarrapada à mão. Depois de a couve ficar molhe na água quente, junta-se massa meada. Minutos depois, colocam-se batatas peladas cortadas às rodelas e pedacinhos de bacalhau e uma farinheira, com cuidado para não rebentar. Logo que a batata estiver cozida, rega-se a caldeirada com bom e abundante azeite, e tomate cortado aos pedaços. Claro que o tomate tem que ser da época. Na “época” do tomate, não há más cozinheiras. Retiram-se os enchidos que se cortam às rodelas. Retifica-se o tempero com pimenta. Nalguns locais, este prato ainda é comido com colher como se de uma sopa completa se tratasse.

O primeiro livro que nos apresenta uma variedade de caldeiradas portuguesas é o célebre “Culinária Portuguesa” de Olleboma (1936). É o primeiro livro de cozinha portuguesa regional, e a integrá-la num conceito gastronómico. Assim aprece-nos uma “Sopa e Caldeirada de Enguias à Pescadora (Ria de Aveiro) ”, “Caldeirada de Congro” (Receita da Ericeira), “Caldeirada à Fragateira” (Lisboa, Sesimbra), “Caldeirada de Enguias” (Receita de Aveiro), “Caldeirada à Moda da Póvoa” (de Varzim), “Escala – Caldeirada das Margens do Guadiana no Caia ou no Sítio da Venda ou no Moinho de Bagaje”, “Lulas de Caldeirada”, “Ensopado de Lulas de Caldeirada à Moda da Nazaré” e “Mexilhão de Caldeirada à Fragateira” (Cascais). Não entre em detalhe pois anteriormente já surgiram várias formas de confecionar caldeiradas. Mas fica o desafio para consultar aquele livro que é uma fonte ainda bem atual.

Ficam a faltar as caldeiradas que os portugueses levaram para outras paragens depois das Descobertas, e outras confeções de carnes a que também se chamam caldeiradas. E em Portugal que temos "o melhor peixe do Mundo".

Para ilustrar, uma caldeireta de peixes, uma “espécie” de caldeirada sem batatas, e esta aromatizada com hortelã da ribeira, numa criação de José Avillez.

Não esqueçam. A Caldeirada acompanhada por um bom vinho sabe sempre melhor.

Bom Apetite!

© Virgílio Nogueiro Gomes