Até parece que este ano o inverno não vai terminar. E com as mudanças mais evidentes das estações do ano, tão diferentes de como estávamos habituados, íamos adivinhando o que se iria comer em cada período. Atualmente, essa expectativa, ou esse prazer, desapareceu.
Agora até o clima parece ter aderido à globalização! Isto de comer morangos em janeiro e alheiras em agosto ainda não vai nos meus hábitos. Assim como comer caça fora da época pelas razões que já citei em textos anteriores. Ou ingenuamente vamos acreditando nos milagres, como o de Sta Isabel, de rosas em janeiro!
Deixemos as lamentações. Várias vezes me perguntam como definir a cozinha portuguesa. Prefiro descrever as cozinhas regionais que, isso sim, o seu conjunto constitui o património culinário português.
Mas voltando ao inverno e às tentativas de definir as regiões e os seus tempos, lembrei-me de que a nossa Terra faz o maior dos elogios a um produto, que transforma e utiliza na sua totalidade, cujos derivados vão sendo comidos ao longo de todo o ano. Refiro-me ao bem-aventurado, infelicíssimo, PORCO.
Banido por algumas religiões, chegando a constituir arma da Inquisição para levantar autos de fé a quem se recusava comê-lo, é glorificado no receituário transmontano.
A matança do porco, caseiro e bem alimentado com produtos da natureza e restos de comida (vianda), era verdadeiramente uma festa de família à qual se juntavam os amigos e vizinhos. Lembro-me de, com os meus irmãos, convencer os meus Pais a fazerem a matança em dia de escola, pois esta empreitada era matéria de justificação da falta. E, se calhar, naquele tempo aprendíamos mais..., mesmo faltando à escola.
A festa era completa, e as mulheres da casa tinham afazeres para uma semana.
Começava o arraial por acorrentar do porco com cordas sobre um banco corrido, de madeira tosca, depois um especialista dava-lhe o golpe de misericórdia, e um alguidar esperava com braço forte, feminino, e um pouco de vinagre para não talhar, o sangue que seria depois destinado a sopas e enchidos.
As tarefas da matança começavam um ano antes com a escolha dos porcos para a engorda. O seu êxito estava garantido graças a uma especial alimentação constituída por castanhas, batatas, nabos, abóboras e as “viandas” ou “biandas”, engrossadas com farinha, geralmente de cevada, farelos e lentilhas. A “vianda” era uma espécie de caldo feito com água, batatas, nabos, beterrabas, couves e outros produtos, que se levavam ao lume para cozerem, ou ainda os restos da alimentação humana.
Marcava-se o dia da matança conforme as conveniências de pessoas que ajudavam, ou em dia de celebrações especiais como os dias de devoção dos Santos de eleição das famílias. Nunca se marcava a matança em período de Lua em quarto minguante, para evitar que a carne minguasse ao ser cozinhada.
De véspera havia tarefas preparatórias como o demolhar do bacalhau e a arrumação em tabuleiros das nozes e dos figos para o mata-bicho. Como em minha casa se faziam os “chouriços de verde” no próprio dia da matança, era necessário deixar já as tripas lavadas e atadas. Cortava-se também o pão e partiam-se as amêndoas para estes enchidos. Antigamente preparava-se também um cesto de verga que era bem forrado com panos de linho, para receber as tripas e evitar que se rasgassem. Hoje usam-se alguidares de plástico.
“Chega o dia da matança. Começam a juntar-se as pessoas. Toma-se o mata-bicho. Em nossa casa era bacalhau assado na brasa, nozes, figos secos, pão e vinho, e aguardente para quem a quisesse. As crianças, e quem gostasse, tomava o pequeno-almoço normal de leite, café, chocolate quente, torradas ou pão com manteiga e marmelada.” Estas citações fazem parte de um memorando manuscrito que a minha Mãe me enviou.
Começava depois a faina. Agarrar o porco e amarrá-lo já deitado no banco. Como num ritual, munido de uma faca especial, aproxima-se o “matador” e vinha a seguir a mulher que recolhia o sangue para um alguidar com sal e vinagre, e para onde tinham sido picadas algumas cebolas, e que também se munira de uma tigela grande para onde jorrava o primeiro sangue, que se deixava coagular e se destinava às “sopas de sarrabulho”. Junto ao banco em que o animal acabara de ser sacrificado gera-se uma brincadeira: a mulher que aparava o sangue tentava enfarruscar com ele a cara do “matador”, ao que este replicava, pelo que originava uma pequena e amistosa batalha. A criançada brinca à volta do banco, outros, mais sensíveis, correm para dentro de casa a tapar os ouvidos na esperança de não ouvir os guinchos do porco.
Consumado a ato, a morte acontecida, chamusca-se o porco sobre uma cama de palha no chão e mantendo o ritual de cada um pegar num molho de palha e chamuscar também algumas partes do porco, garantindo que não se provocam queimaduras. Assenta-se de novo o porco no banco, lava-se e esfrega-se com pedras pouco ásperas, e os homens mais habilidosos “fazem-lhe a barba” com navalhas bem afiadas sem deixar cortes. “É ponto de honra ficar o porco bem chamuscado e bem lavado.”Estes rituais estão em vias de extinção. Penso que fomos educados a ritualizar o consumo de carne de porco. Era uma constante, e nas zonas rurais uma forma de subsistência. Portanto o consumo de carne de porco fez parte da minha educação do gosto.
Tenho vindo a assistir que no Brasil, a carne de suíno, tem vindo a aumentar a proposta gastronómica em restaurantes, a dar novo estatuto a esta nobre carne. E esse movimento provoca o aparecimento de um receituário exaltante, apresentando pratos verdadeiramente novos, e surpreendentes. Viva o Porco! E não esqueçam que acompanhado por um bom vinho, saberá ainda melhor.
Continua em próxima crónica.
© Virgílio Nogueiro Gomes
Foto de © António Bóia
Texto já publicado no meu livro “Transmontanices”, e também na revista BÔ, agora com nova revisão.