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Os ciclos da Natureza têm um encanto que desperdiçamos. E o ciclo das uvas é um dos mais marcantes e do qual nos habituámos ao seu produto final que é o vinho. Nunca podemos esquecer que dentro de uma garrafa de vinho estão concentradas gerações de cultura, que vão desde o plantio ao aperfeiçoamento daquele líquido precioso. Hoje parece tudo fácil. Basta ir a uma loja e comprar.

As uvas eram de consumo corrente na Antiguidade, tanto gregos como romanos, quer frescas, quer secas. Ainda se podem apreciar em algumas pinturas murais desse tempo. O seu consumo continua até à Idade Média e Renascença sendo sempre presente como elemento decorativo nas mesas e depois seriam consumidas com os pratos. Talvez por isso sejam tão representadas em naturezas mortas do século XVI ao século XIX.

Se pensarmos na religião católica, a uva e o vinho estão presentes em muitos textos. Se a uva simboliza a chegada do outono e na escrita de Filippo Picinelli a uva significa a providência, o vinho representa a própria Paixão de Cristo. Todas as religiões se referem ao vinho com regras e simbolismos. Se no Mediterrâneo norte a uva e o vinho fazem parte da trilogia da dieta mediterrânica, no sul a uva fresca e seca é utilizada na alimentação, o vinho é absolutamente interdito. A uva é considerada uma fruta importante na alimentação e é muitas vezes apresentada como elemento remineralizante, diurético, depurativo e energético. Parece também reduzir a fadiga e limpar o organismo de toxinas.

Eu fui educado na província o que me deu uma visão diferente destes produtos. Assisti à plantação de vinha, às suas podas, às necessidades de sulfatagem, às vindimas e à preparação do vinho. Em minha casa também se fazia vinho, apenas para consumo doméstico, um vinho de que ainda hoje me lembro: vinho de bica aberta. E fui educado com o princípio de que o vinho não serve para matar a sede mas para que a comida nos saiba melhor. E ainda hoje continuo com essa prática. Antes das vindimas ainda nos presenteávamos com uvas à sobremesa e com pão ao lanche. Havia o cuidado de colocar no sótão algumas uvas penduradas, para secar, e garantir que chegavam à festa de Passagem de Ano. Naturalmente que algumas se iam perdendo para confecionar alguns doces e outras eram alvo das nossas rapinices.

Não há um receituário nacional de culinária com uvas. Surgem quase acidentais, num receituário rico, no qual as uvas aparecem como reflexo de uma “cozinha de autor” doméstica. Temos, isso sim, um receituário associado às refeições para quem trabalhava nas vindimas. Por isso se desenvolveu o consumo de sardinhas no Douro que em meados do século passado chegavam em barricas. Ainda também umas tachadas de um bacalhau guisado que lhe chamavam “à espanhola”, e que não passava de uma caldeirada de bacalhau com batatas. E depois, naturalmente, muitas receitas nas quais o vinho tem um papel determinante. Lembro-me de que, quando um vinho não tinha qualidade, se dizia que servia para a cozinha. Ainda bem que essa prática quase acabou. Um mau vinho dará uma má execução culinária. Hoje em dia vê-se, felizmente, a preocupação de eleger um vinho nobre para um prato com mais dignidade, e melhor paladar. Eu continuo a pensar que a função mais alta do vinho é ajudar, e completar uma refeição. Acompanhar a comida com vinho vai-nos saber sempre melhor.

O vinho deu o nome a confeções como “em vinha d’ alhos”, no coelho no Alentejo, e carne de porco na Beira Alta ou na Madeira. O vinho é elemento de cozedura na “chanfana”, e na famosa “perdiz à moda do Convento de Alcântara”. E já lá vão muito esquecidas as “sopas de cavalo cansado”.

De Alain Ducasse, no seu “Dictionnaire amoureux de la cuisine”, traduzo livremente a seguinte frase: “Como todos os alimentos, sejam sólidos ou líquidos, os vinhos são, como as verduras, os queijos ou as aves, a expressão direta e imediata de um torrão (terra) ”.

De Azinhal Abelho (1911-1979), poeta alentejano, descrevendo Portugal: “Pão com olhos, queijo sem olhos e vinho que salte aos olhos.”

O vinho tem sido vítima de campanhas por vezes injustas. Ninguém acusa os destilados e mais bebidas com grande presença de álcool. Bebam vinho a acompanhar a refeição que a comida saberá melhor.

© Virgílio Nogueiro Gomes

Julho 2011