(Bola de carnes transmontana)
Como se construiu, e se reconhece uma identidade regional na alimentação? Hoje parece-nos, ainda, fácil caracterizar uma região pois ainda temos na memória hábitos e tradições que se instalaram durante gerações. E a minha geração ainda viveu e foi educada com essas tradições que tinham origem naquilo que a natureza espontaneamente produzia, ou aquilo que os homens orientavam na agricultura de feição com as estações do ano. Depois essa identidade também foi marcada pela dificuldade de transportes. Como o Prof Cláudio Torres afirmou a identidade é resultado da distância que uma mula se poderia deslocar durante um dia. Significava que a partilha de alimentos, perecíveis, só se efetuava até onde o transporte era possível num dia. Assim foi criado um receituário de acordo com os produtos que a região produzia e esse receituário executado em calendário da natureza ou de festividades quase sempre de origem religiosa. Claro que havia outros produtos como o bacalhau e o polvo que chegavam com facilidade por serem secos e permitirem o seu armazenamento. Outras artes de culinária instalaram também um receituário que permitia com facilidade manter em qualidade produtos alimentares mais duradouros como eram as bolas de carne, e todo o tipo de folares, e ainda como exemplo o escabeche. Faziam-se também cuscos. E assim podemos, ainda hoje, definir a identidade de Trás-os-Montes pela alimentação e seus festejos associados.
Mas durante quanto tempo poderemos ainda confirmar essa identidade? Às vezes afirmo, de forma exagerada, que dentro de cinquenta anos, os elementos que caracterizam a nossa identidade, farão parte de um capítulo arqueológico. A matriz vai-se extinguindo. E porquê? Será só pelo avanço civilizacional? Será pela nossa passividade? E a força da desinformação? Um pouco de tudo. Ora vejamos como os hábitos sociais, as necessidades de trabalho, o desenvolvimento dos transportes e especialmente a velocidade da informação. De que modo temos nós as culpas, ou passividade, e como podemos inverter o círculo? Porque foi tão fácil as pizzas, os hambúrgueres e os sushis entrarem no nosso quotidiano? Porque aceitamos fruta acompanhada de açúcar? Será que a linguagem da nossa comida era complexa e difícil? Eu sei que os tempos mudaram e que as nossas mães tinham como tarefa de vida a nossa educação, e comíamos em casa. Hoje têm que trabalhar fora de casa e os filhos comem nos refeitórios das escolas. Eu só conheci essa realidade quando fui para o ensino superior no Porto. Corremos o risco de rapidamente descaracterizarmos a nossas origens. E porque devemos fazer a defesa e manutenção das nossas tradições? Porque temos uma história. Porque o futuro só se constrói com um passado que evolui. A cozinha, ou a arte culinária, é um ato de criatividade. E que acompanhou ritualidades, festividades e até um certo cerimonial. A cozinha desenvolveu os primeiros atos conviviais. E foi sempre evoluindo. Mas quando essa evolução apresenta ruturas cria abismos como os que vivemos atualmente, e pouco respeitar aquilo que era nosso. Por isso é importante proteger e apoiar as comunidades ou associações que continuam as tradições e respeitam a sua evolução.
Mas deixem-me apresentar dois exemplos. Um da desinformação sobre uma receita de Trás-os-Montes. E outra de facilidade e comodismo do Brasil. Recentemente uma revista de culinária e com aspeto gráfico atrativo (Click in Gourmet) apresenta na capa a receita de “Feijoada à Transmontana”. Depois vai ler-se a receita e deparamos nos ingredientes com “chouriço regional” que não quer dizer nada pois em Trás-os-Montes deveria referir “chouriça”. De seguida insere dois enchidos que os transmontanos não apreciam nem confecionam: farinheira e morcela. Para encerrar em disparate enfeita com um ramo de “coentros”! Sim, é de pasmar. Ora a feijoada é à transmontana porque deveria utilizar os produtos da região. Os enchidos citados são das Beiras e o coentro é ainda identificador do Alentejo… O outro exemplo de “comodismo e facilidade” é a utilização massiva do leite condensado na maioria dos doces na Brasil. A utilização alargada do leite condensado está a descaracterizar a doçaria brasileira! Eu sei que é mais fácil…
Força com os elementos da alimentação que ainda nos identificam. E não esqueça que a comida sabe melhor se acompanhada por um bom vinho.
© Virgílio Nogueiro Gomes
Maio 2011
(A bola da foto foi confecionada pela Pastelaria NILDE, em Lisboa)