(Caldo de Galinha do Douro)
Não quero voltar agora à discussão, ou classificação, dos caldos e das sopas. Irei fazer o percurso das sopas mais identificadas com as cozinhas regionais portuguesas e fazer referência àquelas que se tornaram nacionais. Notaremos, naturalmente, que a consistência dos produtos confecionados nos dará versões diferentes, mais leves ou mais pesadas. Mas no panorama internacional Portugal continua a ser um país de sopas, o que muito me agrada. Sou apreciador de sopas e fui habituado a que uma sopa é um alimento reconfortante, fácil e que é muitas vezes uma refeição completa. Tem características terapêuticas, de economia fácil, e pode constituir um alimento forte. Basta pensar nos locais em que é obrigatória como os hospitais ou quartéis militares. Apesar de Portugal ter descoberto o Mundo e em quase todos os locais ter deixado a sua presença culinária, neste capítulo não foi fácil e hoje não sentimos essas marcas em relação às sopas. Exceção para a canja, que nós trouxemos da Índia e a levámos para outros continentes com variações, ou evoluções, que quase afastam a sua essência culinária, como é o caso da canja no Brasil. Aí transformou-se numa sopa de “tudo”, pesada, e que eu assemelho à Sopa de Entulho do Rio de Janeiro. Esta canja que à partida é um caldo de galinha à qual se juntam todo o tipo de legumes e até batata.
Por cá temos a canja tradicional que é um caldo ralo de galinha onde coze também com arroz. Esfarripa-se um pouco da carne do peito, e acrescenta-se habitualmente umas folhas de hortelã. A canja foi sendo acrescentada com os miúdos da galinha e com os ovos em formação no interior da galinha. Posteriormente foi-se substituindo o arroz por massinhas, e hoje em dia é vulgar surgir nas duas opções. Para além da canja de galinha, que é uma sopa nacional apesar de ter sido importada da Índia, encontramos também a canja de conquilhas no Algarve. Assimilada que foi a técnica de confecionar a canja, que antigamente era só de galinha, encontramos agora várias canjas, sobretudo de produtos do mar, peixes, mariscos ou algas, que são da mesma forma um caldo de cozedura da iguaria ao qual se adicionam outros produtos de acompanhamento e que ajudam a completar o gosto dessa iguaria. Canja ou caldo de perdiz é outra opção. Em minha casa sempre se fizeram canjas de perdiz e depois embrulhava-se a perdiz em fatias de toucinho e ia ao forno. Hum! Parece que ainda na época medieval se faria um caldo de cabrito, cozendo a sua cabeça num caldo de água com sal. Este caldo teria funções terapêuticas idênticas às da canja primitiva. Há zonas da Beira Alta onde parece ainda se fazer este caldo adicionado de massinhas. Não podemos esquecer a Canja de Bacalhau das Beiras que adquire o nome de Sopas Gatas, no Alentejo, ou a Sopa de Bacalhau dos Campinos do Ribatejo. Esta sopa de bacalhau adquire um sentido nobre na versão de Sopa Rica de Bacalhau, de Helder Pinho, no concelho de Coruche. Ainda encontramos uma Canja de Bacalhau na zona do litoral central, na Marinha Grande, que é uma canja vulgar com a particularidade de em vez de arroz se usa batata. Atendendo a que só temos batata em abundância desde meados do século XIX, será que esta canja seria confecionada anteriormente com arroz? De volta ao Alentejo encontramos o Calducho, que parece ter origem nos caldos, pelo nome. Mas ao verificarmos a receita encontramos uma sopa feita a partir de um refogado de azeite, poejos, cebola e alho. Depois junta-se a água para cozer o bacalhau e os ovos e quando estes estiverem cozidos serve-se acompanhado por fatias de pão.
No capítulo dos caldos, temos o que também se chama de Água de Unto que é um caldo do Minho e Trás-os-Montes, com cebola e unto, e a variação entre regiões depende do tipo de pão usado. Enquanto no Minho se misturam pão de milho e centeio, em Trás-os-Montes apenas de centeio. Vamos encontrar ainda nas Beiras um Caldo de Unto que não levando pão, contém ovos mexidos e, quando entram no caldo, agitam-se com um garfo para melhor esfarrapar. Depois adicionam-se cubinhos de pão frito. Neste grupo de sopas / caldos salta o emblema alentejano das sopas que é a Açorda Alentejana que ao piso de alho, sal e coentros se adiciona pão e um caldo muito quente. Cada prato leva ainda um ovo escalfado.
No Minho encontramos um Caldo de Castanhas Piladas que é feito com feijão branco, castanhas piladas, cebola, arroz e sal. Este caldo está associado a tradições locais relacionadas com o calendário religioso. Ou dia de S. Bartolomeu, a 24 de agosto, porque o diabo anda à solta e assim, comendo este caldo, se afasta a possibilidade de lançar piolho nas culturas, ou 5ª feira santa para que Cristo não tenha oportunidade de, com o seu sofrimento, olhar para as hortas. Em Trás-os-Montes também se faziam caldos de castanhas até que a batata entrou na moda. E assim encontramos um Caldo de Cebola em que primeiramente se cozem batatas e cebolas, com pedaços de chouriço ou salpicão, um ramo de hortelã e azeite em quantidade generosa. Depois com a ajuda de um garfo esmagam-se as batatas e lava-se ao lume para levantar fervura e retificam-se os temperos. Possivelmente antes da batata este caldo seria confecionado com castanhas. Já que estamos em Trás-os-Montes quero já citar o Caldo de Cascas. As cascas, também chamadas de vasas, palhoças, palhadas ou casulas, são vagens secas de feijão verde, atualmente já em venda em muitos supermercados. Este caldo, é confecionado a partir de um refogado de cebola e azeite, juntam-se pedaços de chouriço e adicionam-se as cascas previamente demolhadas. Este caldo caiu em desuso mas as cascas cozidas renasceram para acompanhar os butelos cozidos.
Continuando nos caldos, apresento-vos um caldo que é uma verdadeira sopa: Caldo da Panela. Identificado como oriundo das beiras interiores é feito com feijão vermelho, orelheira e focinho de porco, couve branca, hortelã e azeite. Termina-se com adição, a gosto, de arroz, massa ou pão. Não lhe falta nada para ser uma sopa! Quase uma refeição completa.
Deixei para o fim, propositadamente o caldo mais famoso de Portugal e quase um ícone das nossas cozinhas. Porque se chama caldo ao Caldo Verde? Será que se começou a confecionar apenas após o aparecimento da batata? Ou seria anteriormente confecionado com castanhas? Parece indiscutível que tenha nascido no Minho. Todos os manuais de cozinha portuguesa apresentam a sua receita. Mas vamos encontrar várias versões, variando estas na forma de fazer o caldo de base, o tempo de cozedura das couves, o pão que acompanha e o tipo de chouriço utilizado. Não querendo reproduzir receitas já publicadas, refiro que o inventário guloso e sábio de Maria de Lourdes Modesto apresenta apenas receitas do Minho e Alto Douro, e da Beira Alta. Permito-me descrever a forma como era confecionado em minha casa transmontana. Colocava-se uma panela ao lume com água. Se era inverno e havia lareira com pote de três pés, com água permanente e ossos do presunto, usava-se essa água que já tinha tempero. Depois colocava-se um pedaço de toucinho, batatas cortadas aos cubos, cebolas às rodelas e alguns dentes de alho. Deixava-se cozer tudo muito bem. Depois reduzia-se este caldo a creme com tudo muito bem passado, e deixava-se próximo do lume. À parte cortava-se a couve muito fina em “caldo verde”. Preparava-se uma terrina colocando as couves no fundo, colocava-se uma rodela do melhor chouriço por cada conviva, e então colocava-se o creme de batata que estava ao lume. Mexia-se um pouco para misturar as couves. Estas não chegavam a cozer e o caldo ficava verde. Depois desta operação regava-se com azeite cru, do melhor. Ia à mesa para servir, acompanhado de fatias de pão de mistura ou pão de centeio. (Continua)
© Virgílio Nogueiro Gomes
Foto © Adriana Freire