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(Eu entre os músicos do "Grupe Amira Saqati" que animaram uma das minhas refeições) 

 

 

Várias vezes me tenho interrogado porque os portugueses conhecem tão pouco Marrocos, sendo tão perto. De certo não serão as expressões citadas na História de Portugal, durante o Estado Novo: “expulsar os infiéis”, “combater os mouros”, que os impedem de conhecer este País encantador. Uma vivência tão diferente e aqui tão perto! E agora com mais voos para facilitar o acesso.

Há vários anos que me desloco a Marrocos, e em especial a Marrakech. Talvez pelo clima mais consolador para fugir, rapidamente, a estes Invernos frios. Já visitei outros locais para além de Marrakech como Tanger, Casablanca, Rabat, Essaouira, Safi, Ouarzazat e Taroudent. E pude sentir algumas linhas comuns na sua gastronomia, mas também algumas diferenças que caracterizam as suas cozinhas regionais. Mas o que mais me tem entusiasmado é a procura de influências que terão deixado em Portugal durante os cerca de seis séculos que por aqui viveram.

Todos sabemos da dificuldade em caracterizar uma gastronomia circunscrita a fronteiras, sendo que nessas fronteiras existe uma variedade bem identificada de cozinhas regionais. Mesmo entre nós não é fácil definir o que é a gastronomia portuguesa… e chegamos ao final assumindo que a cozinha portuguesa é o conjunto das suas cozinhas regionais e o seu todo constitui o património culinário de Portugal. Mas como se caracteriza essa identidade? Durante tempos foi fácil, sem os transportes rápidos que hoje conhecemos, pois a alimentação reflectia o que a Natureza produzia em ciclo continuado, e com a evolução das comunicações começou o intercâmbio e a miscigenação da comida. No princípio tínhamos o que se poderá chamar de uma cozinha camponesa, e que se tem vindo a alterar especialmente a partir do século XIX. Sem esquecermos que sempre houve uma cozinha de “elite” e a grande cozinha popular, uma cozinha no feminino, tradição que se mantém em Marrocos.

Marrocos para além das diferentes dinastias próprias que orientaram o país também a influência de outros povos ou civilizações se fizeram sentir. Na opinião de Salah Chakor a “cozinha marroquina é uma cozinha berbere, árabe, judia, cristã… uma verdadeira amalgama de saber fazer inigualável, o que faz com que seja uma das melhores do mundo com a francesa, a asiática, a italiana…”. Compreendemos a afirmação de grandiosidade! É fácil reconhecer que a cozinha marroquina também foi enriquecida pela influência das civilizações dos países vizinhos e dos seus colonizadores nos quais se incluem os portugueses, espanhóis e franceses. Estes últimos estiveram quase metade do século XX a administrar o território o que, na minha opinião, impuseram seriamente alterações na produção do pão, e hoje, tropeçamos em “baguettes”. No conjunto encontramos influências fenícias, cartagineses, romanas, árabes, andaluzes, espanholas, turcas, portuguesas, francesas e inglesas. Mas a influência maior será a árabe, turca e andaluza. O que “permitiu enriquecer e diversificar para, e assim fazer, um verdadeiro mosaico e um verdadeiro quadro de arte”, ainda segundo Salah Chakor no seu “Traité de Gastronomie Marrocaine”. Assim sentir-se-á que comer “Bastilla” é voltar ao tempo do domínio Anadalous, que as “Briouattes” são primas das chamuças, e parentes próximas dos “Boreks” da Turquia.

Mas o que caracteriza, hoje em dia, a cozinha marroquina? O que vamos encontrar de comum em todo o território? O mais visível é o chá de hortelã que é também um símbolo de acolhimento e de hospitalidade. Serve-se também como aperitivo e digestivo. Depois o pão ”Batbout”, pequeno pão redondo e baixo e levemente levedado. Temos ainda os folhados “R’ghaif” simples ou recheados, e ainda doce “Amlou” pequenos doces de massapão moldados com óleo de argana e mel. Como pratos importantes e obrigatórios de grandes cerimoniais, temos o “Couscous”, o “Méchoui” e a “Bastilla”. Devo referir a sopa “Harira”que pode ser feita de lentilhas, grão-de-bico, abóbora, favas e outros produtos. Por vezes esta sopa é consistente e muito temperada e que constitui uma refeição completa. O tempero mais comum é “Harissa” que além de temperar sopas também acompanha outros pratos como o Couscous. É frequente apresentar, em locais frequentados por turistas, o tempero separado para cada um poder graduar a força do picante. Para a confecção do “Harissa” são necessárias malaguetas vermelhas secas, alho, sal, sementes de coentros, cominhos e azeite.

Sobre o “Couscous” não queria alongar-me pois é sobejamente conhecido, muito embora recentemente se consuma a versão facilitada de adquirir o produto base bastando acrescentar água a ferver. Claro que não posso deixar de citar os “Cuscos” que ainda se confeccionam em Trás-os-Montes, e que possivelmente foram levados por nós para Cabo Verde e Brasil.

Quanto ao “Méchoui”, verdadeiro emblema local, trata-se de um carneiro assado no espeto sobre brasas, bem barrado com manteiga. Enquanto assa, lentamente, vai sendo borrifado com água salgada e amanteigada. A carne deve cozer lentamente sem ficar queimada e no final a carne deve poder afastar-se facilmente dos ossos com a ajuda dos dedos. Muitas vezes é convidado um especialista nesta confecção, um “Chouaye”, que o traz à mesa na hora da refeição. No final é polvilhado com cominhos e sal. O carneiro é uma das carnes mais consumidas e associadas a várias festividades, este prato é considerado uma especialidade nacional.

Mas o prato que desperta mais a curiosidade e que revela a excelência de um artífice da cozinha é a “Bastilla”. Lamentavelmente é muitas vezes traduzida por tarte. Mas não é. E começa pela subtileza da massa. Esta massa, feita simplesmente a partir de farinha de trigo é idêntica à massa brick já vulgarizada em muitas lojas, e que faz lembrar a massa utilizada para fazer os nossos famosos Pastéis de Tentúgal. Quando assisti pela primeira vez, em Marrocos, à preparação da massa lembrei-me imediatamente dos nossos pastéis. Será que esta técnica nos foi deixada pelos mouros do domínio Andalous? Assumidamente os marroquinos apresentam esta especialidade como uma herança “Andalous”, muito embora alguns encontrem uma herança mais remota na Mesopotâmia. Em que consiste este prato? Na sua origem parece que apenas se confeccionava com pombo. Agora faz-se de várias carnes e até de marisco. Prepara-se o recheio pretendido com um estufado da carne, sem ossos, e bem temperado. Numa forma circular e baixa, colocam-se duas ou três folhas de massa, preenche-se com o recheio, e com as pontas da massa fecha-se de forma a obter um envolvimento regular de toda a massa. O recheio fica completamente embrulhado na massa e uniforme. Vai ao forno até a massa ficar estaladiça. Antes de ir para a mesa polvilha-se com açúcar em pó e canela. Este prato é uma obrigatoriedade.

Quanto aos doces, muito doces, temos a prazer de em muitos sentir a aplicação de mel, utilização de muita amêndoa e massas mais ou menos folhadas.

Bem, com devem imaginar não é possível neste espaço fazer a descrição de mais pratos. E o melhor é desfiar-vos a ir a Marrocos à descoberta destes prazeres da mesa. E experimentar aqueles pequenos estabelecimentos que não têm turistas e frequentados pela população local.

Vou, para terminar, descrever-vos uma das últimas refeições que fiz na minha última estada. Pequeno local, com bancos baixos, mesas que nos dão pelos joelhos, e que mal nos sentamos chega pão à mesa. Depois imediatamente uma salada de tomate com cebola e orégãos. Logo de seguida um pratinho fundo com lentilhas cozidas com sete temperos. Finalmente uma palavra: o anúncio dos pratos do dia. A escolha podia ser de “almôndegas com ovo”, “costeletas de carneiro” e bifinhos de vitela”. Consegui que me fizessem um mix, um pouco de tudo. Depois a escolha de um refrigerante pois neste local é proibida a venda de álcool. A escolha recaiu sobre uma Coca-Cola. A refeição não tem talheres, à excepção de uma pequena colher para comer as lentilhas e a salada picadinha de tomate. Tudo excelente e a agradável surpresa de pagar o correspondente a três euros…! Dali parti para uma pastelaria onde quase me empanturrei de doces, muito doces. Para a digestão um café e um longo passeio a pé.

Marrocos aqui tão perto.

Bom Apetite

© Virgílio Nogueiro Gomes