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Como que em continuação da crónica anterior, na qual referia um caldo de carne de que me tinham falado, no último dia em que desfilei no Carnaval de Fortaleza finalmente nos foi servido o famoso caldo que agora baptizei como “O Caldo Maracatu Rei de Paus”, de Dona Nazira. Exactamente no último desfile em que participei, 20 de Fevereiro, no regresso de Maracanaú, foi-nos servido o famoso caldo. O caldo por mim desejado. E lá estive eu na fila, de copo na mão, aguardando a minha vez de ser servido. E fui servido pela própria Dona Nazira. Conforme referi na crónica anterior, trata-se de um caldo (a que me apetece chamar sopa) de legumes, enriquecido com carne picada que lhe dá consistência e que a transforma num caldo revigorante capaz de substituir uma refeição. E todos aguardáramos ordenadamente por este caldo que ajuda o corpo e torna a alma mais leve. Este Carnaval, dos Maracatus, não é um Carnaval de folguedos, com samba à mistura. É um acontecimento de raízes culturais tão fortes que o desfile mais parece uma procissão etnográfica, cujos elementos são necessários conhecer. Estamos quase perante uma montagem cénica, quase teatral. É uma manifestação do que se pode chamar cultura afro-brasileira, consequência da miscigenação das várias culturas: índia, africana e portuguesa. Por isso, nunca podemos esquecer que, quantas vezes, a memória do que comemos tem a ver com a emoção que atribuímos a esse acontecimento. Quanto maior a emoção, ou a surpresa do evento, melhor será o seu registo e a sua memória.

Nesta minha recente estada de três meses fora de Portugal houve três grandes saudades alimentares: as nossas sopas, o nosso peixe e o nosso pão. Que não há igual em mais nenhuma parte do Mundo.

E isto serve de pretexto para eu reclamar se estarem a apagar lentamente as nossas tradições alimentares, a par de outros hábitos sociais ou de convivência em grupo. Como estamos a deixar entrar o samba no nosso Carnaval, também as nossas tradições alimentares se vão perdendo. Prometi na última crónica que escreveria sobre tradições alimentares do Carnaval. Apesar de já estarmos a caminho da Páscoa, esta comida de Inverno sabe bem a todos. E este Inverno que demorou em nos abandonar! Tradicionalmente no Carnaval esgotava-se o stock de produtos associados ao Inverno. Eram os enchidos mais pesados, eram o finalizar dos presuntos velhos, eram comidas fortes que puxavam ao bom acompanhamento do vinho.

Todos sabemos contar as gerações que foram necessárias para se instalarem muitas ou tantas tradições. Agora é tão rápido perder essas tradições que, me parece, deveríamos reflectir sobre as razões porque tão rapidamente mudamos de tradições, ou hábitos.  Será que as nossas cozinhas regionais se afectam excessivamente, nas fontes do prazer, pelas ideologias mistas de marketing e nutricionismo? Porque estão desaparecendo as nossas tradições alimentares, muitas vezes a favor de sucedâneos alimentares? Seria fácil responder com a vida agitada e a redução de tempo para refeições completas. E o comodismo. E a falta de edução para o gosto.

“No Entrudo come-se tudo”. É a expressão afirmativa da fase de abstinência que se aproxima? Ou da chegada da Primavera? No Entrudo são permitidos todos os abusos, incluindo a liberdade para a sátira social, tão proibida noutros tempos. E na comida também se aproveita para “encher a barriga” que vem aí o período do peixe. Porque se come a feijoada à Transmontana em toda a região? Ou a Orelheira com Feijão no Porto e em Baião? Ou a Bexiga à Moda de Labução? Ou o Bucho Recheado em Coimbra e no Juncal? E os Butelos, Palaios ou Bulhos? E as Cascas ou Casulos? E os Pézinhos de Porco de Coentrada? E os Cozidos Completos? Estamos perante comida forte, na maioria consequência bendita das matanças de porco, e aproveita-se para os exageros da época. Recentemente tenho vinda a assistir a um crescimento do consumo dos Butelos e das Cascas, saindo da tradição localizada em Trás-os-Montes, e aparecendo em alguns locais em Lisboa e Porto. Até à fundação de uma Confraria. As Confrarias deveriam ser bastiões da memória e esforçarem-se pela manutenção de algumas tradições. Na área da doçaria temos ainda as recordações dos Bolinhós ou Brinhóis de Abóbora, Sericá, Borrachões, Filhós e Malassadas, Nogados, Pasteis de Grão ou Azevias, Coscorões, Fofas do Faial e Boleimas. E em registo fantástico dos meus amigos Maria de Lourdes Modesto e Afonso Praça nos seus livros “Festas e Comeres do Povo Português”.

Neste ano que se deveria celebrar com festa o décimo aniversário da classificação da Gastronomia Portuguesa como Património Cultural, muito contentes deveríamos ficar com a execução, ou projectos com carácter definitivo, levantamento do receituário, qualificação do mesmo e criação do Museu Nacional de Gastronomia. Há muito mais a pedir mas se, pelo menos, víssemos estas acções satisfeitas ficaríamos todos muito contentes. Precisamos de actos visíveis para a nossa gastronomia enquanto elemento diferenciador como destino turístico. Com toda a gente a colaborar. Enquanto não sentirmos internamente o auto elogio da nossa comida não adianta saltar fronteiras.

Bom Apetite!

Foto de Laudemir Nogueira

© Virgílio Nogueiro Gomes