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Já em tempos escrevi uma crónica que intitulei de “Coincidências”. Na altura aproveitei para referir que quando as coincidências são boas as atribuímos ao destino, e quando são más até as bruxas invocamos. Bruxas sobre as quais dizemos não acreditar mas que elas andam por aí, até confidenciamos… Mas eu atribuía as boas coincidências a “bruxas boas” que, essas, já afirmamos existirem. Vejamos que das bruxas, as más, aceitamos as boas heranças como as de alguma prática culinária. De boa fama ficou a “Bruxa de Valpaços”.

Mas vamos às coincidências. Regressei recentemente de uma estadia de três meses no Brasil. Nos primeiros tempos são poucas as saudades que sinto da mesa portuguesa. Mas, passado o primeiro mês, eu, que consumo pouco, o nosso pão faz-me falta. Logo ao pequeno-almoço. Quem diria que num país em que os primeiros padeiros estabelecidos eram portugueses, a nossa tradição padeira se esvaiu…! Pão afrancesado é que está na moda. Depois do pão sinto falta das nossas sopas. Apesar de haver no Brasil algumas sopas de tradição, perdeu-se o hábito de comer sopa, e esta poucas vezes aparece nos cardápios. Contudo a maior saudade é do nosso peixe. Portugal tem “o melhor peixe do Mundo”, e sabemos dar-lhe uma cozedura exacta. Lá arranjei um restaurante que entendeu como eu gostava do peixe e agora o oferece como “os portugueses” gostam. Depois ainda as saudades da Água das Pedras, mas que parece estar ultrapassada para a próxima estada, com abastecimento garantido.

Pois este ano meti-me numa aventura. Entrei para um grupo “Maracatu”, o do “Rei de Paus, para desfilar no Carnaval diferente do samba, e que reflecte a cultura afro-brasileira. Os que tiverem curiosidade sobre esta categoria de Carnaval, sempre podem ler as minhas crónicas neste SITE (www.virgiliogomes.com). No primeiro dia de desfile, Domingo de Carnaval, chego ao hotel cansado, apenas com forças para colocar um travesseiro no fundo da cama para dormir com os pés elevados e, ligada a televisão, surpresa minha, o programa transmitia o espectáculo da Feira do Fumeiro de Vinhais que tinha terminado nesse dia. Tão longe e tão perto. Claro que me aguçou o apetite para o almoço tradicional que, nesse dia, sempre comia em Bragança. O Domingo Gordo! Eu, que nesse dia, nem tinha jantado! Mas o cansaço era maior e sonhei com butelos, salpicões, cascas, chouriços, pispernos, rodião cozido… E adormeci a contar porcos bísaros a saltar a cerca… A saudade desvaneceu-se com a vitória, e obtenção do primeiro prémio do grupo com que desfilei. Estreante, eu, e logo premiado! E lá passei o Carnaval com poucas intervenções gastronómicas, à excepção de um PF (prato feito) à maneira simples do Brasil, arroz, feijão, massa, farofa e duas postas de peixe-serra, tudo comido com colher, e o tradicional Caldo do Maracatu “Rei de Paus”, da Dona Nazira.

Eis que, chegado a Portugal, sou de imediato convidado para um almoço de cascas com butelo. Logo recordei a saudade que senti, e agradeci ao destino (ao meu Fado) a coincidência de agora me ser proporcionado este pitéu. Que no meu tempo não se comida durante a Quaresma. O meu amigo quis proporcionar-me, à chegada do Brasil, estes bons e saudáveis pecados. Nunca entendi muito bem certos conceitos sobre alguns pecados. E neste período até me reconciliei com José Saramago ao ler o seu “Caim”. Quanto melhor se conhecer a Bíblia, melhor se entenderá o livro. A Igreja perdeu uma boa oportunidade para ficar calada, os seus comunicados fizeram a grande publicidade do livro e despertaram muitas curiosidades, como a minha.

Mas voltemos ao meu almoço. O dono da casa recebe-nos de avental. E que avental… Daqueles que só os amigos sabem entender. Sentia-se o cheiro bom que vinha da cozinha. Depois de instalados, sou divertidamente convocado para a cozinha a ajudar o nosso anfitrião. A ajuda limitou-se à conversa. E ele lá ia preparando o presunto “bísaro”, legítimo, com um corte a imitar o dos restaurantes mas que rapidamente mudou para um corte mais familiar, aos pedaços. Depois, veio o “Queijo Terrincho” de meia cura. Eram os aperitivos. Acompanhados de vinho branco “Vale Pradinhos” e “Valle Passos”. Uma vez sentados à mesa, vem uma Sopa de Castanhas bem consistente, e capaz de fazer uma refeição completa. Sopa confeccionada conforme a Mãe do nosso anfitrião fazia. Depois, depois era um perfume consistente que se aproximava e a cada travessa colocada na mesa, o deslumbramento do olhar. É muito importante sentir o cheiro da comida! Primeiro chegaram as “cascas” com batata, cenoura e couve. De seguida o “butelo” já aberto. Seguidamente uma travessa com “salpicão”, “chouriço” e “carne da feira” (rodião cozido). Quando pensávamos que tinham chegado todas as iguarias, eis que surge uma travessa com “pisperno” (joelho e presunto velho com osso cozido) e ainda uma travessa com “orelha” de porco também cozida. Claro que todos os produtos tinham sido cozidos, e alguns em conjunto. E a maioria chegada de Trás-os-Montes, na véspera. Sei que bebi um vinho tinto muito competente para acompanhar, sei que era de garrafão, obviamente transmontano. Para terminar a grande surpresa: “caldo com castanhas”. Não se peguem ao nome, nem pensem que seria um erro gastronómico. O caldo era de laranja com castanhas, previamente cozidas em “almíbar”, um xarope de açúcar. Esta sobremesa inventada pelo dono da casa, possivelmente inspirado no Oriente, foi um remate inteligente para aliviar o conjunto de carnes fortes e temperadas que comêramos anteriormente. E o caldo estava fresco. Acabámos o almoço com café e uma excelente aguardente de medronho, caseira, produzida em Vinhais.

Tudo isto aconteceu em casa da Lídia e Vasco Veiga. É por estes acontecimentos que eu, por vezes, escrevo que não preciso muito de ir a Trás-os-Montes. Trás-os-Montes também acontece em Lisboa.

Bom Apetite.

© Virgílio Nogueiro Gomes

Na foto, uma chouriça de Vinhais e pão transmontano, fotografados noutra ocasião.