É sempre difícil começar uma crónica. Muitas vezes o pior é escolher o tema ou assunto. Tenho já anteriormente divagado, e outras fixando detalhadamente, as formas de educação do gosto. E a forma como disso se toma conhecimento através das memórias. As memórias como consciência dessa educação. E porquê tanta preocupação em relação à educação do gosto? Porque tantos colunistas se referem a tal? Pois é mas a velocidade dos tempos presentes, e as soluções alimentares modernas, fizeram esquecer o que só mais tarde, e por vezes irremediável, vimos constatando: as fragilidades da qualidade alimentar.
Cada vez mais se comem produtos alimentares em vez de alimentos. Abandona-se a sopa, os legumes e a fruta. Fui educado a gostar de tudo e a não desperdiçar comida. Ainda relembro o gesto de, mesmo por automatismo, beijar o pão quando este caía ao chão. Porquê? Ritual sagrado? Não, o pão sempre foi um elemento basilar, e estruturante, da alimentação portuguesa. Alimentação que não é gastronomia. Estou a referir uma necessidade e não um prazer. Os anos de destruição agrícola de cereais eram anos de fome. Por isso até de bolota se fazia farinha, por necessidade. E o pão continua a ter um papel tão importante que a actual legislação obriga à redução da quantidade de pão, pela tendência de hipertensos criados pela absorção de produtos alimentares que já contêm sal.
O pão tem um papel assumidamente marcado na sociedade, na evolução dos povos e das mentalidades. É uma referência delicada na formação do mundo católico que definitivamente influenciou as nossas recordações. Se no Antigo Testamento o pão é o símbolo da providência divina, no Evangelho surge-nos, por excelência, como alimento divino. Durante a idade Média, sendo o pão a base a alimentação, surge com um carácter sagrado no cristianismo como elemento comestível que é oferecido aos fiéis simbolizando na cerimónia eucarística o corpo de Cristo. Esta dupla visão e utilização, veio aumentar o sentimento de necessidade e permanente valorização, do pão.
Daí o reflexo de educação de beijar o pão quando este caía ao chão. Curiosamente criaram-se outras tradições que valorizam o pão. Nunca me esqueço de ouvir ao meu avô materno responder, à pergunta por onde se partia o pão, ele responder que era pelo sítio que não deita sangue. O pão é tão bom que se pode partir pelo lado que se queira. Não vou alongar-me com a presença do pão na escrita e nas artes da pintura. Teria que se fazer um tratado. Documento importante é o livro que o saudoso padre Belarmino Afonso escreveu sobre o pão e que deveria ser reeditado. Também o nosso conterrâneo Guerra Junqueiro (1850-1923) lhe dedicou o poema “Oração ao Pão” que não resisto a transcrever a parte final: “Trigo, dá-nos a candura! / Dá-nos a alegria! / Dá-nos a humildade! / Dá-nos o martírio! / Dá-nos o amor e a dor, a paz e a fortaleza! / Dá-nos ao corpo tudo isto, / Dá-nos à alma tudo isto, / E faremos de nós o pão de Cristo / O pão de Deus, o pão do Bem, / O pão da eterna Glória, o pão dos pães, ámen! (1893)”
O nosso pão, o pão de mistura tem vindo a ser substituído por mix de confecção rápida. Mas as nossas crianças deveriam ser confrontadas com o pão verdadeiro e, depois, comparar. O pão dá com tudo, até com uvas para lanchar. E do pão nasceu a sopa. Esta não passava de um caldo ao qual se juntava pão.
Fui educado a gostar de tudo e a não deixar comida no prato. Comendo de tudo aprendi a hierarquizar o que gosto mais e menos. Hoje assisto muitas crianças e jovens com a expressão categórica de não gostar de metade das iguarias. Surpreendido pergunto muitas vezes se já provaram e, lamentavelmente, a resposta é muitas vezes negativa. Ora como é possível não gostar de um alimento que não se provou?
Esta prática de facilitismo, e excesso de satisfazer as vontades das crianças, impede-as de criar uma educação do gosto que mais tarde é sempre menos eficiente de recuperar. A disciplina é fundamental em qualquer tipo de educação. Mas a disciplina tem que agir em paralelo com sentido de justiça e compreensão. Deixem recentemente de dar aulas em escolas onde os alunos não chegam com a educação básica que deveriam receber em casa. E isso reflecte-se depois no rendimento do ensino.
Voltando à educação do gosto, temos que referir as grandes mudanças sociais que operaram no século XX. Já quase não temos as crianças educadas pela Mãe. Ainda restam algumas avós que confeccionam alimentos e não dão alimentação com produtos alimentares. O que andam a perder estas novas gerações… Comer sopa parece um castigo, quando se devia ensinar que é um alimento completo. E que comam sopa pela sua saúde. E no Verão por que não aprender a fazer sopas frias á base de frutos?
As memórias que reconstituem a educação do gosto não se ficam pelo pão, o pão presente. A educação do gosto poderá começar pela imposição de uma dieta, um tipo de alimentação já tradicional. A imposição vai criar matrizes que permitirá posteriormente fazer distinções e comparações. Neste capítulo, e um produto que muito aprecio, temos as alheiras que sabia distinguir a sua origem pelo tempero. Se em criança fui habituado a comer alheiras de três ou quatro origens, torna-se fácil aprender a distinguir. E assim criar a minha própria hierarquia do gosto. E esse vai multiplicar-se em relação a outros produtos ou outras confecções.
A vantagem é que num passado recente estes assuntos aconteciam naturalmente. Não será fácil com o crescimento urbano que as famílias tomem este assunto como política alimentar, ou orientem a alimentação com estes objectivos. Apenas os mais disponíveis, ou curiosos, se fixarão nestes propósitos. Mais uma vez confirmo a sorte de ter sido educado na província e habituado a comer e apreciar as comidas da família. E guardar essas memórias.
A minha memória viu-se privada de uma parte grande. Como perder uma biblioteca ou as suas emoções. Se não foi a memória foi-se o aconchego dessa memória. Irremediavelmente. E os sorriso de confirmação da memória quando já quase não havia palavras. Mas havia o olhar. E ainda o incentivo para a minha luta na designação dos enchidos de bacalhau a que chamam alheiras.
Comam lembrando as memórias da terra.
Bom Apetite!
© Virgílio Nogueiro Gomes